A construção da maior usina de dessalinização de água do mar do país, em Fortaleza, virou um embate entre o governo cearense e as operadoras de banda larga e data centers. As empresas afirmam que há risco aos cabos submarinos que ligam o Brasil à rede mundial de computadores.
O ponto-chave é que o local escolhido para receber a obra é a praia do Futuro, onde chegam 17 cabos e está o segundo maior hub do mundo de sistemas ópticos submarinos, atrás apenas de Marselha, na França. Segundo o Ministério das Comunicações, 99% do tráfego da internet do Brasil passa por esse hub. Ele também atende países vizinhos e até a África.
O governo cearense afirma que não há mais como mudar o local da obra e que não há qualquer risco; já as empresas dizem que se não houver relocação há um risco de “apagão” de internet no país. O governo federal vê o impasse com grande preocupação.
A capital cearense possui uma logística estratégica para o setor por estar mais próxima dos Estados Unidos, onde está o grosso dos dados de internet do mundo.
A obra pode gerar apagão de internet no país porque não está se colocando uma usina onde tem um cabo, mas onde tem um hub todo! Hoje, ninguém pensa em chegar com internet no Brasil por outro caminho que não seja o de Fortaleza.
Luiz Henrique Barbosa, presidente executivo da TelComp, entidade que representa operadoras de telefonia, banda larga e acesso à internet; TV por assinatura e data centers
Em caso de um dano de cabo, por exemplo, um conserto pode levar semanas, diz Luiz, o que causaria nesse período no mínimo uma redução de tráfego de dados.
Ele também afirma que o setor não vê problema em ter a usina na cidade, mas questiona a escolha do local.
Se a gente voltasse 20 anos e já tivesse a usina, nenhuma companhia escolheria colocar cabo lá porque haveria unidade industrial. Essas áreas são escolhidas justamente por serem ideais para investimentos. Falamos de valores bilionários.
Luiz Henrique Barbosa
Inicialmente, o projeto previa os dois dutos de captação e emissão dos resíduos instalados a uma distância de 40 e 50 metros dos cabos. Atendendo a solicitação do setor, o governo cearense ajustou, e hoje a obra prevê dutos com distâncias superiores a 500 metros.
Entretanto, Luiz diz que só isso não é suficiente para dar segurança porque haverá cruzamento de dutos na área terrestre. “Estamos falando de obra em escala industrial”, cita.Continua após a publicidade
Em média, esses cabos submarinos têm uma vida útil de 20 a 25 anos. Os primeiros que chegaram a Fortaleza estão em sua fase final e devem ser substituídos em breve. Mas há outros mais recentes, que estão no início de operação. Há ainda três projetos de novos cabos para chegar no Brasil que estão em andamento.
Para ele, se a obra for feita mesmo no local, Fortaleza será deixada de lado, e os empresários vão buscar outros pontos.
Hoje, Fortaleza é um parque tecnológico, e isso levou diversas empresas a se instalarem lá. São mais de 40 mil empregos diretos. Causa um desconforto muito grande fazer o projeto lá; de alguma forma, macula a região. O governo está colocando tudo a perder por um projeto mal concebido.
Luiz Henrique Barbosa
O presidente da Cagece (Companhia de Água e Esgoto do Ceará), Neuri Freitas, afirma que, primeiramente, a reclamação das empresas ocorre fora de hora, visto que projeto começou a ser estudado em 2017, passou por debates, consultas e audiências públicas.Continua após a publicidade
Agora, quando a gente tem a licitação concluída e a ordem de serviço emitida, as empresas falam que não pode ter a obra lá? É intempestivo.
Neuri Freitas
Ele lembra que o governo cearense já mudou o projeto atendendo a empresas e mudando o local dos dutos. Para isso, usou como referência dados internacionais que orientam uma distância de pelo menos 500 metros. “A distância hoje é de mais de 560 metros.”
Somente para alterar isso no projeto, diz que o governo precisou refazer estudos, o que atrasou o início da obra em um ano e elevou os custos da planta em R$ 35 milhões.
Uma obra distante de Fortaleza necessitaria fazermos uma adutora para trazer a água, e isso custaria muito mais. Hoje a planta está orçada em R$ 520 milhões, e esse valor poderia subir 30%. E mesmo assim não adiantaria, porque a tubulação tem de entrar na cidade.
Neuri Freitas
Sobre o cruzamento de cabos na área terrestre, Neuri afasta qualquer risco. Diz que no local já há, por exemplo, tubulação de 1.000 milímetros de espessura, que é do tamanho que será colocado na área terrestre.
Esse argumento é absurdo. Hoje quem entrega água e coleta esgoto para os data center somos nós. Já há obras e interferência de dutos, não só nossos, mas de gás e de energia, além de um gasoduto da Petrobras. O que parece é que eles querem a praia do Futuro só para cabos de fibra ótica, uma reserva de mercado.
Neuri Freitas
A coluna procurou a Anatel (Agência Nacional de Telecomunicações), que afirmou que acompanha o caso e promoveu um evento em Fortaleza esta semana para debater a obra e a importância dos cabos.
Lembra que o Decreto n.º 9.573/2018, que institui a Política Nacional de Segurança de Infraestruturas Críticas, protege instalações e sistemas “cuja interrupção ou dano, total ou parcial, resulta em sérios impactos nas esferas social, ambiental, econômica, política, internacional e na segurança do Estado e da sociedade.”
Já o Ministério das Comunicações diz que “está atento e acompanha de perto a discussão a respeito da construção da usina”.
Também está ciente do receio das entidades e defende que “qualquer situação que gere impacto deve ser profundamente discutida, analisada e avaliada para a construção das melhores soluções para a preservação do hub internacional de Fortaleza.”
Atuam nas discussões, o MCom, a Anatel, a SPU [Secretaria de Patrimônio da União], a Marinha, o governo do Ceará, além dos consórcios que operam os cabos, as entidades do setor, no sentido de construir um ambiente seguro e sem riscos para as infraestruturas.”
Já o Sindicato Nacional das Empresas de Telefonia e de Serviço Móvel, Celular e Pessoal também disse à coluna que acompanha as discussões e as empresas manifestam preocupação com os riscos apontados pela área técnica da Anatel.
As empresas reforçam ainda a importância de se manter a integridade dos cabos submarinos para a disponibilidade de todo ecossistema de telecomunicações do nosso país e manutenção da comunicação do Brasil na internet.”
A usina está em fase de espera de licenciamento ambiental e liberação da SPU e a empresa vencedora da PPP (parceria público-privada) fará um investimento de R$ 520 milhões na planta, mais R$ 2,5 bilhões para manutenção e operação do sistema por 30 anos.Continua após a publicidade
A obra vai fornecer água para abastecer cerca de 700 mil pessoas da capital, mas deve ajudar todo o estado, já que a água que abastece a capital cearense —que não tem mananciais— vem do interior.
Informações UOL