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Na literatura fantástica, os elementos centrais das narrativas não possuem correspondentes na realidade e surgem a partir da imaginação fértil e sem limites de seus autores. Um dos principais representantes da vertente, o escritor britânico J.R.R. Tolkien consagrou o estilo na monumental saga O Senhor dos Anéis, que elevou à categoria de heróis os hobbits dotados de espírito puro e com pendor para a amizade. “A fantasia é escapista, esta é a sua glória”, disse Tolkien ao justificar o sucesso de seus livros. Se na ficção os devaneios são bem-vindos, na vida real eles costumam trazer problemas, uma vez que podem ser usados para falsear a verdade. No Brasil, a promessa do governo de zerar o déficit público — ou seja, não gastar mais do que arrecada — a partir de 2024 parece, até agora, mais uma obra inventada do que algo realizável. “O orçamento está no campo da literatura fantástica”, disse o economista Alexandre Schwartsman, ex-diretor do Banco Central, em entrevista para o programa VEJA Mercado. “Faltam só os orcs e os elfos.”
As ilusões permeiam o discurso do governo, mas a dura realidade é bem diferente. Há no horizonte um risco considerável de o país extrapolar suas metas fiscais, o que pode colocar em xeque o próprio crescimento econômico. O perigo se agravou nas últimas semanas com uma série de pautas que, em boa medida, levarão à explosão inevitável dos gastos públicos. A bomba-relógio está aí para quem quiser ver. No último dia 12 de setembro, o Senado aprovou por unanimidade uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que incorpora servidores de antigos territórios de Rondônia, Amapá e Roraima ao quadro da administração pública federal. O custo estimado é de 6,3 bilhões de reais por ano.
Não foi apenas isso. Recentemente, sob a liderança de Arthur Lira, a Câmara aprovou um socorro a estados e municípios, que reclamam perda de arrecadação causada pela desoneração de combustíveis e energia feita pelo governo de Jair Bolsonaro. Foi liberado não só o ressarcimento de 27 bilhões de reais acertado com o Supremo Tribunal Federal, como também as unidades federativas poderão antecipar neste ano 10 bilhões de reais que seriam pagos em 2024. Montantes extras serão ainda destinados a fundos de participação dos estados e municípios. Também na Câmara, discute-se a ampliação do limite anual de faturamento do microempreendedor individual (MEI) e uma nova faixa de alíquota para o Simples Nacional, o que certamente provocará impactos bilionários nos cofres federais.
Os programas de aumentos de gastos se sucedem, ao feitio dos governos petistas. Antigos pleitos dos municípios, o parcelamento de dívidas da previdência e a eliminação de cobrança de multas e juros para os valores em atraso, têm boas chances de seguir adiante. O efeito de iniciativas como essas seria desastroso. “Além da própria incerteza que o governo trouxe com seu pacote fiscal, o Congresso andou com pautas que podem ter impacto muito significativo sobre a arrecadação”, diz Jeferson Bittencourt, economista da gestora ASA Investments e ex-secretário do Tesouro Nacional. Não à toa, os índices de aprovação do trabalho de Fernando Haddad no Ministério da Fazenda estão em queda.
O maior risco fiscal, de fato, tornou-se o principal motivo para o fim da lua de mel entre o mercado financeiro e Haddad. O divórcio é compreensível: a mera sinalização de descompromisso fiscal leva, entre outros danos, à queda de confiança, ativo indispensável para qualquer país que deseje transmitir credibilidade. É consenso entre economistas e gestores que as expectativas fiscais do governo, baseadas nas regras definidas pelo arcabouço, são quimeras. Os números mostram por que o equilíbrio das contas parece distante. Segundo a ministra do Planejamento e Orçamento, Simone Tebet, o governo precisará de 168 bilhões de reais em receitas extraordinárias para fechar as contas no ano que vem. O objetivo está longe de ser alcançado por uma série de motivos.
Em primeiro lugar, há pouco tempo disponível — 2024, afinal, está quase aí. Além disso, o governo depende de apoio significativo do Congresso para promover alterações constitucionais capazes de levar a novas receitas. Mas, possivelmente, esses movimentos serão objeto de questionamentos na Justiça, em disputas entre contribuintes e a União. A conclusão: o aumento da arrecadação está firmado em bases pouco sólidas. A própria Tebet reconheceu que a meta é “audaciosa”, e que talvez não se realize. “Se as principais medidas de receita não forem aprovadas, é óbvio que teremos de repensar a meta”, afirmou, em audiência no Senado.
No âmbito interno, técnicos da equipe econômica já estão debruçados sobre a possibilidade de revisão do resultado primário. Isso deve ocorrer se as receitas não estiverem subindo até o começo do ano que vem. “É matemática: ou ajusta a meta, ou reduz despesas”, disse a VEJA uma fonte graúda do Ministério do Planejamento. Ao fim de 2024, o mercado não só prevê que o governo não alcançará o objetivo de resultado primário como fechará o ano com déficit de 0,80% do Produto Interno Bruto (PIB). “Portanto, se o déficit ficar entre 0,25% e 0,50%, seria melhor do que o esperado”, completou a fonte.
Sinais recentes emitidos pelo governo mostram que, de fato, as projeções se ajustam ao sabor dos acontecimentos. Em março, quando o arcabouço fiscal foi apresentado, a equipe econômica falava em déficit de 0,5% do PIB em 2023. Em setembro, diante da queda da arrecadação, a estimativa foi ampliada para 1,4%. Se não houver guinada positiva nos rumos da economia — tudo indica que não haverá —, é quase certo que, no final do ano, o resultado primário será pior que o projetado no início do governo Lula. As promessas, portanto, seriam ilusórias.
Ajustes nas projeções, ou mudanças nos métodos de cálculo, são recorrentes no Brasil. Desde 2000, quando o sistema de metas do resultado primário foi criado, em 57% das vezes ele foi alterado, segundo estudo realizado pela Fundação Getulio Vargas (FGV). O custo político pode ser alto. “Mudar as regras do jogo no primeiro ano de vigência do arcabouço fiscal será uma sinalização ruim”, alerta Vilma Pinto, diretora da Instituição Fiscal Independente (IFI). Ela prevê que o atual governo chegará ao fim, em 2026, com déficit primário de 0,4% do PIB. O resultado fiscal positivo só seria atingido, segundo seus estudos, em 2030. Mais uma vez, fica evidente que zerar as contas já no ano que vem é um sonho quase inatingível.
A meta “audaciosa”, para usar o adjetivo escolhido por Simone Tebet, exige do governo uma capacidade de arrecadação fora de seu alcance. O governo diz que aumentará as receitas com medidas já anunciadas, como a taxação de fundos offshore e de apostas esportivas, entre outras iniciativas de baixo impacto. Somadas, tais investidas dificilmente ultrapassarão, segundo economistas, a marca de 52 bilhões de reais capturados no período de um ano — faltariam, portanto, 116 bilhões de reais para que o governo se aproprie dos 168 bilhões em receitas extraordinárias previstos por Tebet. Não só a conta não fecha como há incertezas quanto à recorrência dessas medidas.
O passado recente também não joga a favor da equipe econômica. Em agosto, a arrecadação de impostos, contribuições e outras receitas caiu 4,1% em comparação com o mesmo período de 2022, configurando o terceiro mês consecutivo de reduções em 2023. No acumulado dos oito primeiros meses deste ano a redução real foi de 0,83% comparada ao mesmo período de 2022. O resultado negativo foi em parte compensado pela alta da receita previdenciária e do imposto de renda provenientes dos rendimentos do trabalho, além da aceleração da atividade econômica. É incerto, entretanto, que a economia crescerá em ritmo suficiente para elevar a arrecadação aos patamares desejados pelo governo para cumprir sua meta.
A estabilidade fiscal é um sonho distante da realidade brasileira. Desde 1989, os gastos federais crescem em ritmo superior ao da expansão da economia. Por isso, a carga tributária saltou de 22% para 34% nas últimas três décadas, um movimento que penaliza o desempenho das empresas e o bolso dos cidadãos. Para piorar, mesmo com impostos em alta, o endividamento do país chegou a quase 90% do PIB, e há o risco de aumentar. Se o time econômico comandado por Fernando Haddad não fizer a lição de casa, pelo lado das despesas, a chance de o cenário mudar é nula. Na economia, não existem milagres: sem equilíbrio fiscal, não se avança. Portanto, é preciso desarmar a bomba-relógio antes que seja tarde demais.
Créditos: VEJA.