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Após pressão, europeus agora se unem à demanda de pesquisadores brasileiros pela restituição do fóssil, tema de um artigo científico publicado em maio que reconhecia o status ‘possivelmente problemático’ da peça na Alemanha, devido aos indícios de tráfico. MPF apura o caso.

Reconstrução do crânio do Irritator challengeri feita com peças impressas por uma impressora 3D — Foto: Reprodução/Twitter/Olof Moleman

Reconstrução do crânio do Irritator challengeri feita com peças impressas por uma impressora 3D — Foto: Reprodução/Twitter/Olof Moleman 

Pesquisadores brasileiros e europeus publicaram nesta sexta-feira (28) uma carta conjunta pela restituição ao Brasil do fóssil do dinossauro Irritator challengeri, atualmente na Alemanha —depois de ter sido contrabandeado do Brasil.

O fóssil, considerado o crânio mais completo e preservado dos dinossauros de seu tipo, foi tema de um artigo científico publicado em maio deste ano por cientistas alemães e franceses. Eles fizeram uma nova análise do crânio e chegaram a conclusões inéditas sobre a espécie. Desde 1996, esse fóssil é classificado como um holótipo —peça que serve como base para descrição de uma espécie e, portanto, é de importância ímpar para a ciência. 

No estudo deste ano, os pesquisadores europeus reconheciam o “status possivelmente problemático” do fóssil, comprado pelo Museu Estadual de História Natural de Stuttgart de um comerciante de fósseis em 1991. O comerciante, por sua vez, teria importado o fóssil para a Alemanha antes de 1990. 

O problema é que desde 1942 todos os fósseis encontrados em território brasileiro são propriedade da União e não podem ser comercializados. A exportação para fins científicos depende de autorização governamental, não pode ser permanente e costuma exigir o envolvimento de cientistas brasileiros nas pesquisas. 

Essas condições não foram demonstradas pelos pesquisadores europeus no caso do Irritator, causando revolta na comunidade científica, como mostrado pelo g1

“O caso do Irritator indica que não enfrentamos casos isolados, mas as consequências de um padrão sistêmico. Portanto, consideramos imperativo que o ministério [alemão] efetue uma revisão sistemática da proveniência e da aquisição legal dos fósseis brasileiros nas coleções do Estado, também à luz da legislação brasileira”, diz um trecho da carta, a que o g1 teve acesso com exclusividade.

O documento é endereçado à ministra da Ciência, Pesquisa e Arte do Estado de Baden-Württemberg, província onde está localizado o Museu Estadual de História Natural de Stuttgart, que detém o fóssil brasileiro. 

Quando o artigo científico foi publicado pelos pesquisadores europeus, o paleontólogo Juan Cisneros, professor da Universidade Federal do Piauí e um dos autores da carta aberta, denunciou o caso ao Ministério Público Federal no estado. 

“Há registro oficial nos autos da Agência Nacional de Mineração (ANM) de que não houve autorização de aquisição, cessão, doação, comodato ou qualquer outra espécie de autorização por parte do antigo Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM) de exportação do território nacional do fóssil de Irritator challengeri (espécime SMNS 58022) em favor da Alemanha ou outro país”, afirma o procurador André Batista, responsável pela apuração no MPF. 

De acordo com o procurador, o Ministério das Relações Exteriores foi procurado para informar eventuais providências que já foram ou estão sendo tomadas para a recuperação do fóssil. Procurado pelo g1, o Itamaraty afirma que está em contato com Universidade Regional do Cariri (Urca), no Ceará, para tratar do fóssil. 

O contrabando de fósseis é um problema global que ainda afeta a Bacia do Araripe, que se estende pelo Ceará, Piauí e Pernambuco e é uma das mais ricas do mundo nessas peças. Foi nela que, muito provavelmente, o Irritator foi encontrado. Fósseis extraídos na região são vendidos em alguns casos por milhares de dólares no exterior. 

Diante dos questionamentos sobre a legalidade da posse alemã, a revista científica Paleo Electronica chegou a suspender, por duas semanas, a publicação do artigo. 

Até autor do artigo científico suspenso assina a carta

Imagem digital de como seria o dinossauro anfíbio Irritator challengeri — Foto: Reprodução/Olof Moleman

Imagem digital de como seria o dinossauro anfíbio Irritator challengeri — Foto: Reprodução/Olof Moleman 

Um dos cientistas que assina a carta é o paleontólogo Serjoscha Evers, orientador do artigo científico sobre o Irritator que fez deflagrar a polêmica.

Em junho, depois de anos de pressão da comunidade paleontológica, o país europeu devolveu outro fóssil brasileiro de importante valor científico, o Ubirajara jubatus, que também havia sido contrabandeado para a Alemanha. O Ubirajara agora integra a coleção do Museu de Paleontologia Plácido Cidade Nuvens, administrado pela Universidade Regional do Cariri (Urca) na cidade de Santana do Cariri. 

Além de Juan Cisneros, da Universidade Federal do Piauí, outra paleontóloga brasileira, Aline Ghilardi, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, está entre os principais articuladores da carta sobre o Irritator. A atuação de ambos foi crucial para a restituição do Ubirajara. 

“Apesar da grande visibilidade destes dois casos [Ubirajara e Irritator], o motivo da nossa preocupação é mais amplo. As coleções públicas em Baden-Württemberg guardam milhares de fósseis do Brasil. Isto nos preocupa na medida em que a lei brasileira confere a propriedade dos fósseis à Nação desde 1942, e proíbe a sua exportação permanente desde pelo menos 1990. Esta designação de propriedade e restrição de exportação no mínimo levanta dúvidas sobre o status legal dos fósseis nas coleções públicas de Baden-Würtemberg”, afirma a carta. 

“Na química, por exemplo, o hidrogênio é igual em qualquer lugar. Na paleontologia não é assim: cada fóssil é um objeto único, que aporta informações diferentes”, explicou Juan Cisneros em entrevista ao g1

“A gente depende desses objetos únicos para fazer as pesquisas, porque eles são como livros: vamos até eles para fazer consultas. Ter esse fóssil aqui, na Bacia do Araripe, vai contribuir para que as nossas pesquisas avancem mais”, diz ele.

O documento aberto endereçado à autoridade alemã afirma que a legalidade da permanência do fóssil na Alemanha não é a única preocupação dos cientistas. 

“Gostaríamos de convidar o ministério a considerar as implicações éticas das coleções públicas alemãs que guardam quantidades consideráveis de fósseis de um país que busca ativamente proteger seu patrimônio paleontológico por lei”, afirma a carta.

Em fevereiro, o Conselho Internacional de Museus (Icon, na sigla em inglês) publicou a chamada “lista vermelha de objetos culturais em risco” elaborada pelo Brasil. Entre os itens com maior risco de serem roubados, saqueados ou traficados estão os fósseis.

Irritator: a fraude até no nome

Irritator challengeri: entenda a polêmica do dinossauro roubado do Brasil

Irritator challengeri: entenda a polêmica do dinossauro roubado do Brasil 

O nome científico do fóssil guarda relação com a suposta forma problemática com que ele saiu do Brasil. 

Segundo o relato conhecido, “Irritator” remete à palavra “irritante”, porque quando o fóssil foi comprado no exterior, ele parecia estar bastante completo e preservado. No entanto, análises posteriores revelaram que a peça havia sido fraudada e partes da estrutura do crânio não eram ossos autênticos. 

A “irritação”, segundo esses relatos, teria se dado não só pela descoberta da farsa, mas também pelo difícil trabalho de remoção das partes falsificadas. 

Ao g1, o principal autor da pesquisa publicada na revista científica contou que parte do focinho do fóssil foi identificada como modelagem artificial quando o museu alemão recebeu a peça. Ela já passou por diferentes limpezas, mas ainda foi possível encontrar traços de material enxertado mesmo durante a pesquisa mais recente. 

Caso o crânio do Irritator challengeri seja devolvido ao Brasil, ele fará parte de um movimento global pelo retorno de bens de valor científico, cultural e artístico aos seus países de origem. 

Nos últimos anos, várias negociações bem sucedidas entre países, museus, instituições e comunidades locais tem levado a devoluções de peças que foram contrabandeadas em décadas recentes ou que foram saqueadas durante o período colonial pelas antigas potências em suas colônias. 

No caso brasileiro, são justamente os fósseis que têm atraído mais atenção e mobilizado pedidos de restituição, especialmente a partir do caso do Ubirajara jubatus.

Em meio à pressão pela devolução do Ubirajara, o Brasil obteve a primeira repatriação de fóssil: em 2021, depois do pedido formal do Museu de Paleontologia Plácido Cidade Nuvens, a Universidade do Kansas devolveu um valioso fóssil de aranha (batizado em homenagem à cantora Pablo Vittar), além de outros 35 fósseis de aracnídeos que os cientistas brasileiros nem sabiam que estavam nos Estados Unidos. 

No ano passado, a Itália também devolveu um fóssil de um peixe que viveu na Bacia do Araripe (PI, CE e PE) há 100 milhões de anos. A peça, avaliada em quase 3 mil euros, estava sendo comercializada ilegalmente em um site de leilões —o que ainda acontece com bastante frequência. 

Recentemente, a França apreendeu vários fósseis de origem brasileira que seriam leiloados. Dois lotes, um de 998 peças, e outro de 46 itens (em sua maioria insetos e peixes), serão repatriados. 

Também está na França o fóssil praticamente completo de um pterossauro de 112 milhões de anos, encontrado no Araripe. Este ainda não teve o pedido de repatriação aceito. O Ministério Público Federal no Ceará abriu inquérito nos três casos. 

Há, ainda, outros casos investigados pelo MPF-CE de fósseis que não foram devolvidos, um na Itália, outro na Coréia do Sul e um conjunto de 60 peças na Alemanha. 

“O mérito da descoberta e o prestígio são atribuídos às instituições do Norte Global, que continuam a obter financiamento e recursos que poderiam ser destinados às instituições e pesquisadores do país de origem. Perde-se a oportunidade de descentralizar a produção global de conhecimento e distribuir recursos de forma mais justa”, explica a especialista em direito do patrimônio Letícia Haertel.

Informações G1

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