Duas das músicas que não sairão da sua boca nos próximos dias nasceram da imaginação do Luciano Gomes.
Entre tantas outras, são dele “Swing da Cor” e “Faraó (Divindade do Egito)”. A primeira ganhou o país na voz de Daniela Mercury, a segunda ficou conhecida com Margareth Menezes, hoje Ministra de Estado da Cultura. Uma, o Brasil inteiro conhece pelas batidas do tambor bem no comecinho. A outra, por ser a aula de história que muitas de nós não teve.
“Nunca na minha vida imaginei que o Egito fosse um país africano”, revela Luciano, hoje com 56 anos. Quando fez a letra não passava dos 20. “Porque eu não tive esse conhecimento na escola, nunca explicaram. Lá eu aprendi três coisas: Lei Áurea, Princesa Isabel e sobre navios negreiros. Só. Tudo que eu sei sobre ser um homem negro aprendi nos blocos afro”. Foi ali e na pesquisa para escrever Faraó que as peças foram se encaixando, ele explica.
“Não só para mim, viu? Muita gente ainda não sabe dessa informação hoje em dia, descobre com a música”. Por isso, diz, respeita tanto os blocos quanto o trabalho que fazem. São verdadeiras aulas no meio da rua.
Funciona assim: todo Carnaval, os blocos afro se decidem por um tema, no de 1987 o Olodum escolheu falar do Egito. Quem cuida da composição recebe uma apostila com informações sobre aquele assunto, foi o caso de Luciano, que já fazia parte da ala de compositores. É a partir desse material que, geralmente, nascem as músicas. Geralmente, porque não foi bem assim nesse caso.
“Quando me entregaram a pesquisa, eu senti falta de saber mais. Fui para a biblioteca e achei um livro velho, bem velho mesmo, que era até preto e branco. Apareceu do nada no meio das coisas. Ali estava a história dos faraós. Daí comecei a criar em cima disso”, detalhou. A letra nasceu em uma semana e estourou no Carnaval. “Eu não fiz aquela letra, ela quem me escolheu”.
Nascido no Bonfim, Luciano tinha 10 anos quando rumou para o centro histórico de Salvador com Dona Dalva, sua mãe. Foi morar no coração dos blocos afro, do agito cultural da época. O destino quando tem que acontecer, acontece mesmo. Quando assistiu a um desses blocos com o olhar curioso que só as crianças têm, nunca mais esqueceu. Aquela mistura de sons, de cores. Aquele jeito de as pessoas cantarem e estarem pelas ruas entrou com tudo em seus sentidos. Daí não teve como, ele precisou começar a batucar no que encontrasse pela frente.
“A gente nem instrumento tinha, era tudo na lata de manteiga mesmo. Pedia na padaria, os caras davam. Aí usava um pedaço de cabo de vassoura para bater”, relembra. Foi num desses shows distraídos aos 10 anos que Luciano foi percebido por um diretor do bloco “Barroquinha Zero Hora. Foi assim que ele virou cantor. Cantor?
“Esse diretor pediu para a minha mãe para eu ir a um ensaio, disse que eu tocava direitinho e ela só aceitou, mas foi junto. Primeira vez com instrumento de verdade, dei o meu recado, né. Aí ele quis que eu cantasse, me viu nas rodas do Pelourinho fazendo isso. Eu sempre fui muito gaiato”, disse dando uma gargalhada. Na época Luciano até cantou, mas não o que pediram.
“Eu voltei para casa dizendo para mim mesmo: eu não vou cantar aquela música lá não, eu vou cantar uma minha. Ai eu escrevi uma letra e levei. O pessoal gostou, rapaz. Depois esse diretor veio falar comigo: eu vou ver como é que faz para negociar com juizado de menores para você sair com a gente”. Outra boa risada dessa lembrança.
Pronto, essa é uma das maneiras de contar como a vida musical de Luciano começou: sendo percebido por alguém, com alguém que acreditasse nele. A partir daí se ligou a vários blocos, construiu uma carreira de compositor e cantor. Até ser escolhido por “Faraó” para trazê-la ao mundo. Dói em Luciano, ele reforça a todo momento, que tudo tenha ficado tão mais difícil para pessoas que se parecem com ele.
“Falta oportunidade para a garotada da periferia mostrar o seu talento, como aconteceu comigo lá atrás. A coisa está tão elaborada para o lado do profissionalismo, que quem vem da favela não tem como apresentar uma letra para alguém não”, se indigna.
“Hoje você tem que levar a música pronta num pen drive, tem gente pedindo até partitura. Como é que o jovem da favela, que na maioria das vezes nem um celular tem, como é que ele vai conseguir mostrar o seu talento assim?”.
Há 38 anos Luciano mantém o Samba Nativo, que hoje acontece em Cajazeiras. Uma banda sim, mas mais que isso: um lugar para que talentos possam ter uma chance no mundo da música, no mundo da arte. Carlinhos Brown e Timbalada tem músicos saídos do grupo, para dar um exemplo.
Ele que sempre foi um devoto da rua, que contou várias vezes durante a conversa que não gosta desse negócio de ensaio fechado. Que acha que a arte que faz sentir, e sentido, é aquela que abraça o povo, contou que anda feliz e desconfiado com o futuro. Feliz em como “Faraó” lhe deu uma chance de não morrer. E desconfiado dos seus 65 anos, acha que alguma coisa vai acontecer. Não sabe de onde vem, sempre achou isso.
“Quando eu chegar mais ou menos nessa faixa aí”, começou Luciano, “se eu não estiver mais aqui, quero simplesmente fechar os olhos pensando: ‘meu nome ficou eternizado’. Só isso, só o nome. Mesmo que o Carnaval não exista mais, eu espero que as pessoas ainda estejam cantando Faraó pelas ruas”.
Informações UOL