“Eu já a persegui e cheguei a instalar um programa no computador para saber tudo que ela faz por lá. Vivo com isso na cabeça: será que ela está saindo com outro? Me sinto descontrolado, refém desse sentimento”. Murilo*, 55, já buscou tratamento, mas sofre de ciúme patológico.
Apesar de o ciúme ser algo que todos irão experimentar durante a vida, ele pode se manifestar em diferentes níveis de intensidade. “O ciúme normal é transitório, específico e baseado em fatos reais, já o patológico se caracteriza por ser uma preocupação infundada, irracional e descontextualizada”, resume a psiquiatra Fabiana Nery, coordenadora do Centro de Estudos da Holiste Psiquiatria, de Salvador (BA).
Muitas vezes, o sentimento é visto como prova de amor. A própria etimologia da palavra deriva do latim zelumen, zelus, e do francês jalousie. Denota o sentido de “zelo, ciúme de amor”.
Somos ensinados desde cedo que se a pessoa sente ciúme é porque ela gosta do outro. As novelas e os filmes mostram muito isso: a pessoa se descontrola diante de uma situação de ciúme e, depois, leva flores para o parceiro como demonstração de amor. Assim, passamos a valorizar um discurso glamoroso do cuidado.”Andrea Stravogiannis, psicóloga e autora do livro “Ciúme Excessivo & Amor Patológico: Quando o Medo da Traição e do Abandono se Torna uma Obsessão”.
No entanto, incluir o ciúme na receita do amor costuma ter um preço alto, alerta Stélios Sant’Anna Sdoukos, psicólogo e terapeuta de casais na The School of Life Brasil. Segundo ele, o risco é naturalizarmos as perigosas ações feitas em nome do ciúme como próprias de um relacionamento amoroso e, assim, aceitá-las como parte da experiência.
“Isso não significa que o ciúme deva sempre ser ignorado, combatido ou evitado pelo casal, mas quando ele leva alguém a cometer atos de controle, obsessão, agressividade e perseguição, chegando aos extremos das diversas formas de violência e até de homicídio, certamente, nenhuma vítima deste dito ‘ciúme’ nomearia essas ações como amor, e é por isso que ninguém deveria fazer ou endossar essa confusão perigosa”, enfatiza Sdoukos.
De acordo com Stravogiannis, que também coordena os setores de pesquisa e tratamento do amor patológico e ciúme excessivo, do Ambulatório Integrado dos Transtornos do Impulso do Ipq-HCFMUSP(Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP), para entender se o ciúme está desmedido, é possível fazer uma comparação com a dependência do álcool: não é somente a quantidade de álcool que a pessoa ingere que determina se ela é alcoolista ou não.
O que é levado em consideração para avaliar o ciúme, inicialmente, é a sua duração e o grau de interferência na vida dos envolvidos na relação amorosa.Continua após a publicidade
Para ser considerado normal, deve ser passageiro, baseado em fatos e transmitir a mensagem de cuidado. Nesse caso, cumpre o objetivo de preservar o relacionamento, sem prejudicar o casal e a relação e sem limitar o espaço do outro. Não há interferência na individualidade, na vida social e nas atividades comuns de ambas as partes.
O ciúme patológico geralmente não está associado a fatos, sendo pautado por situações imaginárias, desconfianças sem fundamento e controle do outro.
Stravogiannis conta que uma das características marcantes da personalidade dessas pessoas é a impulsividade, acompanhada de agressividade. Diante de uma suposta provocação, as primeiras ações são a autodefesa e a proteção à pessoa amada.
Eles não racionalizam no calor da emoção, simplesmente agem. Depois de terem exagerado na dose, vem o sentimento de culpa, de raiva e tristeza. Mas apesar da vergonha momentânea, o ciumento excessivo continua acreditando que está certo e voltará a ter outras crises e a expor o outro e a própria relação à humilhação.”Andrea Stravogiannis, psicóloga
Em suas pesquisas, s psicóloga identificou também outros três aspectos comuns entre essas pessoas:Continua após a publicidade
1. Preocupação excessiva e pensamentos distorcidos
Os ciumentos excessivos passam em torno de oito horas diárias preocupados com a infidelidade do parceiro. Para eles, a forma como o companheiro se veste ou se comporta diante dos outros é a causa de seu alto índice de ciúme: se, por exemplo, o parceiro é extrovertido, na interpretação do ciumento, ele pode estar dando em cima de alguém; se gosta de se vestir bem para ir trabalhar, quer provocar um colega ou o até mesmo o chefe.
2. Perfil controlador e comportamento stalker
Com medo de ser traído, o ciumento usa todos os artifícios que têm para controlar o parceiro, assim como delimitar os seus sentimentos e comportamentos. Sempre alerta, passa a fiscalizar os deslocamentos e intenções do outro na tentativa de precaver o encontro com eventuais rivais. Adota rituais como checagens de objetos, roupas íntimas, redes sociais, status do WhatsApp e telefonemas. Em casos extremos, chega a colocar GPS no carro do outro e até contrata detetives para descobrir possíveis traições, mesmo que não haja nenhum indício de infidelidade.
3. Diminuição da vida social
Possuem a tendência a reduzir eventos sociais, contato com a família e os amigos. Eles tendem a ter o comportamento de se isolar, o que afeta suas vidas sociais em diversos aspectos, desde o trabalho até o lazer, já que, ao tentarem prever e controlar situações que acreditam serem ameaçadoras, optam por não correr riscos. “É comum eu ouvir dos meus pacientes ‘Não vou ao aniversário porque pode ser que meu marido se interesse por alguém. Então, melhor ficarmos em casa assistindo a um filme'”, conta Stravogiannis.Continua após a publicidade
Geralmente, as vítimas só se dão conta de que estão se relacionando com uma pessoa extremamente ciumenta quando sentem que a sua liberdade individual foi tolhida. Passam a notar que não podem mais encontrar os amigos, usar um decote ou um batom vermelho e se relacionar com outras pessoas. É comum se sentirem sufocadas e insatisfeitas com a relação.
A recomendação dos especialistas é propor uma conversa assertiva para entenderem juntos o que os dois sentem diante do ciúme. “É importante mostrar ao parceiro ciumento que você também se sente angustiado, acolher os sentimentos dele e mostrar disposição para superarem juntos. A psicoterapia e a terapia de casal são recomendadas nesses casos”, sugere Stravogiannis.
Sdoukos reforça que vale a pena compartilhar com o parceiro ciumento suas experiências sobre esse sentimento e o caos interno por ele provocado, do ponto de vista dos medos e necessidades emocionais não satisfeitas. “Conversar sobre ciúme numa perspectiva desarmada pode ser um veículo importante para criar conexão emocional entre um casal”, diz.
*História de paciente compartilhada por Andrea Stravogiannis