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Dois homens nada parecidos têm as histórias cruzadas depois que um deles vai parar na casa em que o outro já está — argumento confuso, decerto, mas também elucidativo. Mal-entendidos nunca são o bastante em enredos em que a realidade é feita de equívocos tolos que por seu turno degringolam em situações verdadeiramente complexas, aditivadas por tensão e perigo. Indivíduos comuns, cuja banalidade afronta o mais simplório dos homens, passam por matadores de aluguel, assassinos impiedosos que levam seu ofício a sério e não dispõem de tempo nem de vontade para brincadeiras ou outras dispensáveis interações sociais. Evidentemente, hão de surgir lances cômicos em tamanha barafunda, uma vez que o facínora gosta de mencionar poetas do século 19, e faz de seus versos o código com que se identifica. O outro, se tanto, domina a arte de vender os planos da academia do melhor amigo, mas começa a perceber que tem condições de ir além caso absorva a estranheza daquele universo diferente, pleno de outras cores, muito mais grotesco do que ele supusera, ao passo que encantador também.

O absurdo sem maiores consequências desse encontro fortuito ganha dimensões incontroláveis em “O Homem de Toronto” (2022), comédia em que o diretor Patrick Hughes junta temas aparentemente desconexos, mas que se interligam, graças ao absurdo das situações que se deslindam pouco a pouco. Teddy Nilson, o atrapalhado anti-herói encarnado por um Kevin Hart naturalmente engraçado, decide passar uns tempos num chalé rústico num lugar bucólico em Onancock, na Virgínia, sudeste dos Estados Unidos, mas devido a um defeito da impressora — boa sacada do roteiro de Chris Bremner e Robbie Fox —, não distingue o número do imóvel que o contrato especifica. Bate à porta de Randy, um vilão de personalidade instável, muito bem desenvolvido por Woody Harrelson, que enxerga na estranha coincidência a oportunidade de uma aposentadoria milionária, quando poderá, enfim, livrar-se da chefe obsessiva, interpretada por Ellen Barkin, deixar para trás a exasperante rotina no crime e abrir seu restaurante cinco estrelas. Por óbvio, aparecem percalços no caminho: Teddy não é exatamente um bastião de coragem, mas sua tibieza de espírito choca o pragmatismo sanguinário de Randy, que precisa ensinar o beabá da máfia ao novo candidato a discípulo.

Hughes constrói seu filme de modo a fazer com que o desconforto que permeia a relação entre os personagens de Hart e Harrelson ceda lugar a uma amizade genuína, em que pese o temperamento antissocial de Randy, que só consegue dispensar carinhos ao Dodge Charger 1969 440 R/T, que ele chama de Debora; Teddy, por sua vez, é o típico americano tranquilo, inabalável em sua fé na humanidade e muito satisfeito com o trabalho medíocre, que lhe possibilita viver em relativo conforto com a mulher, Lori, interpretada por Jasmine Matthews. Mesmo assim, se unem no enfrentamento aos bandidos mais bem treinados do mundo, a começar pelo Homem de Miami, de Pierson Fodé (guarde esse nome) numa transição esmerada da trajetória de galã para trabalhos mais exigentes. Maggie, a melhor amiga de Lori, vivida por Kaley Cuoco, entra em cena como a coadjuvante de luxo, enchendo a tela com tiradas cínicas sobre o relacionamento da personagem de Matthews, que sempre passa o aniversário de casamento sozinha.

No segundo ato, o texto de Bremner e Fox inclui a menção desnecessária a um tal Sebastián Marín, de Alejandro de Hoyos como o corrupto presidente da Venezuela, a fim de, quiçá, atenuar uma possível futilidade — como se um filme não pudesse ser “apenas” divertido, sem maiores pretensões, e fosse obrigado a apresentar uma questão ideológica qualquer, um tema pretensamente sério que o cacifasse para premiações e outros galardões que tais —, o que se revela uma ameaça ao bom andamento do que se vinha assistindo até então. Felizmente, “O Homem de Toronto” volta ao leito, mostrando a que veio com suas incontáveis reviravoltas cheias de perseguições, trocas de socos, dublês detalhadamente ensaiados e marginais que leem Yeats.


Filme: O Homem de Toronto
Direção: Patrick Hughes
Ano: 2022
Gêneros: Ação/Comédia
Nota: 8/10

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