O volume de recursos de pessoas físicas e empresas do Brasil abrigado em paraísos fiscais ao fim de 2020 superou a marca de US$ 200 bilhões pelo segundo ano seguido. O valor representa mais de R$ 1 trilhão e pode ser alvo de um aperto nas regras de tributação com a reforma tributária.
Os valores referentes a 2020 foram atualizados pelo Banco Central nesta semana e a real quantidade pode ser ainda maior, já que eles se referem apenas aos números declarados pelos contribuintes.
Na lista de 68 jurisdições consideradas paraísos fiscais pela Receita Federal, os campeões na destinação de recursos são as Ilhas Cayman (US$ 69 bilhões), as Ilhas Virgens Britânicas (US$ 60,5 bilhões) e as Bahamas (US$ 53,4 bilhões).
Entram na conta diferentes ativos, como participações em empresas e imóveis.
São obrigados a declarar ao BC, sob pena de multa, pessoas físicas ou jurídicas residentes, domiciliadas ou com sede no país que tenham no exterior mais de US$ 1 milhão ao fim de cada ano ou US$ 100 milhões ao fim de março, junho ou setembro.
Questionado sobre qual o montante apenas de pessoas físicas em paraísos fiscais, o BC não apresentou os valores. “Nestas estatísticas, não está disponível a abertura entre pessoas jurídicas e pessoas físicas”, afirmou em nota.
Enviar recursos para paraísos fiscais é uma forma de evitar o pagamento de impostos no país de origem, já que esses locais tributam a renda em menos de 20%.
Para especialistas, o uso de paraísos fiscais por pessoas físicas e empresas do Brasil mesmo durante a pandemia pode ser explicado por diferentes fatores.
Além da busca por menos tributação e transparência, são mencionados motivos como a desvalorização do real frente ao dólar, a percepção de risco sobre o país, receios com mudanças no sistema tributário e até o maior planejamento para heranças em casos de falecimento em meio à crise sanitária.
“Um dos motivos é o medo da morte. Muitas pessoas levam o patrimônio para o exterior para organizar a sucessão”, afirmou Gabriel Quintanilha, advogado e professor convidado da FGV Direito Rio.
Segundo ele, a pessoa tem entre as vantagens da operação não só menos tributação como também regras facilitadas para a transferência.
Jefferson Nascimento, coordenador da área de Justiça Social e Econômica da Oxfam Brasil, afirmou que o envio de recursos para paraísos fiscais estimula a desigualdade no país ao diminuir uma arrecadação que ajudaria a custear políticas —como em saúde ou educação.
Agora, ao menos parte desse problema tem a chance de ser solucionado com uma regra para endurecer a taxação desses recursos, em discussão entre governo e Congresso na proposta de reforma tributária.
O relator da proposta do governo que altera o Imposto de Renda, deputado Celso Sabino (PSDB-PA), afirmou que seu texto vai voltar a prever a tributação mais rígida para paraísos fiscais.
O endurecimento estava previsto no projeto de lei do governo —mas foi retirado na versão seguinte, apresentada a líderes em 13 de julho e escrita em parceria entre o ministro Paulo Guedes (Economia) e o deputado.
O artigo 6º determinava a taxação dos recursos de pessoas físicas brasileiras alocados em empresas estrangeiras (as chamadas offshore) quando sediadas em paraísos fiscais.
A cobrança seria anual, mesmo se o dinheiro não fosse trazido ao Brasil. Atualmente, indivíduos brasileiros não estão sujeitos a esse tipo de cobrança. “Vamos pagar a redução do imposto de todos os brasileiros, com folga”, disse Sabino, sem dizer os valores.
Nascimento, da Oxfam, afirmou que a medida é importante, mas ainda aguarda o detalhamento do texto para saber como a regra será implementada. “Isso certamente é positivo, sem sombra de dúvida”, disse.
Além do formato do texto a ser proposto pelo relator, ele afirmou que também é motivo para atenção a forma como esse debate ocorrerá durante a tramitação da proposta no Congresso. “Eu sugeriria cautela”, disse.
A regra para a tributação dos recursos em paraísos fiscais independentemente da distribuição aos acionistas é recomendada pela OCDE (Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico), cuja secretária de temas fiscais, Zayda Manatta, havia criticado a exclusão. Para ela, o país estava perdendo a oportunidade de fechar o cerco contra paraísos fiscais.
“É uma brecha na legislação brasileira, pois quem tem capacidade de investir em um país de tributação favorecida não vai aplicar diretamente e sim por meio daquele país”, afirmou em entrevista Manatta, chefe do Fórum Global sobre Transparência e Troca de Informações para Fins Fiscais da OCDE.
Ela disse que a retirada da regra favoreceria a desigualdade tributária. “Isso abre uma possibilidade de planejamento tributário muito grande e desigual, porque é muito mais favorável [para os mais ricos] do que para o indivíduo que tem capacidade menor de se globalizar”, disse.
“Tudo o que o sistema deve evitar é tratar de forma diferente situações assemelhadas. E, se for beneficiar alguém, tem de ser o pequeno”, afirmou.
Folhapress