A tentativa de se estabelecer alguma ordem que reja o caos da natureza humana, que apenas reflete a biologia — indisciplinada, selvagem, caótica —, é a função precípua do expediente político, sem o qual os indivíduos já teriam regredido novamente à barbárie da Idade Média (476-1453), ou ainda à violência cândida da Idade da Pedra, em que o homem matava “apenas” para defender-se dos inimigos que ameaçavam seu território, a pureza de suas mulheres ou o desenvolvimento de sua prole, tão cômodo se encontrava em tal cenário que nele permaneceu por quase três milhões de anos. Se o gênero humano abandonou as cavernas e se estabeleceu em moradias confortáveis, onde dispõe de todo o fogo de que necessita para suas tantas demandas diárias, o deve em grande parte à capacidade de fazer as escolhas certas, malgrado sua natureza seja muito mais lembrada pela frequência com que se equivoca, e o quão impactante cada um desses erros se torna, para quem os comete e, o principal, para aqueles que estão próximos. E, por óbvio, as coisas não demoram a sair do controle.
Não é de hoje que a França se destaca do restante do Ocidente por compreender o mundo moderno à sua maneira e propagar essas impressões por meio das muitas manifestações artísticas de que toma parte, inclusive o cinema e, mais especificamente, certo tipo de cinema. Filmes de gângster não são exatamente a melhor definição do que vem a ser a essência da rica indústria cinematográfica francesa, mas como o sol sempre acaba brilhando para todos, esse subgênero também é contemplado por lá. “O Mundo é Seu” (2018) fica longe de agradar a todos os tipos de público; na trama, uma releitura personalíssima e bastante estilizada da obra de Quentin Tarantino, o diretor Romain Gavras, celebrado como um cineasta promissor em Cannes, toma o crime organizado como mero pano de fundo para disparar sua metralhadora giratória contra o modelo de vida das sociedades ocidentais, há muito apodrecido, e mesmo contra as relações humanas, mormente as românticas, baseadas nele. A vontade de vencer, primeiro à custa de trabalho e muito empenho, depois com uma providencial ajuda de leis caducas e do poder do submundo — cada vez mais influente, esteja-se onde se estiver —, é capaz de transformar um homem e seu entorno, ainda que ao fim do processo note-se um rastro de destruição e o consequente vazio.
Romain Gavras parece ter herdado o pendor para o cult do pai. Filho de Costa-Gavras, célebre pelo caráter documental de sua produção, bem como por ficções solidamente amparadas numa visão de mundo humanista, cujo componente histórico se faz distinguir pelo rigor intelectual — a exemplo de “Estado de Sítio” (1972), sobre a incipiente ditadura uruguaia e a ascensão do grupo paramilitar Tupamaros —, o diretor de “O Mundo é Seu” mantém a veia de crítica sociopolítica do pai, mas ainda que aqui opte por conferir a seu trabalho um caráter mais popular, o que não seria necessariamente um problema, mas, no caso, é. Malgrado não seja só Tarantino, o roteiro, uma parceria entre Gavras, Karim Boukercha e Noé Debré, se estende sobre o que poderia se constituir como uma justificativa para a debacle da vida nos grandes centros urbanos, um exercício de investigação sociológica que até teria alguma relevância se não se perdesse em meio a tantos clichês, tantos atalhos, tantas soluções fáceis (e erradas) para as questões que anseia abraçar.
A grande aspiração de François é ficar rico. Começa esse seu plano da maneira mais ortodoxa possível, ou seja, trabalhando sobre as negociações para a venda de picolés Mister Freeze no Magrebe, no noroeste da África. O problema é que por toda a vida o personagem de Karim Leklou se permitiu dominar pela mãe e se tornou um perfeito inútil. Dany, de Isabelle Adjani, não passa de uma golpista, que usa o filho em planos ardilosos para furtar mercadorias de luxo em lojas de departamento na Galeria Lafayette, em Paris, mas se comporta como uma autêntica sultana, ostentando os lenços de grife e os imensos óculos escuros que costuma roubar. Esses dois tipos miseráveis, condenados a partilhar a mesma vida sem futuro, não veem nenhum impedimento moral em seguir assim, uma vez que também se sentem espoliados desde sempre, apesar de nunca dizerem por quem e por quê. Leklou e Adjani levam à cena desempenhos muito acima do observado entre os demais membros do elenco, à exceção de Oulaya Amamra, que já havia dado um banho de talento e carisma em “Divines” (2016), dirigida pela irmã, Houda Benyamina. Mesmo que espantosamente plastificada, a veterana se sai muito bem em emprestar a Dany aquele ar de aristocrata falida que é a própria essência da personagem, batendo uma bola redonda com Leklou, por sua vez perfeito como o filhinho da mamãe apatetado. Aos poucos, François vai mostrando certo cansaço dessa onipresença materna e decide redobrar a dedicação no seu sonho de virar um magnata dos sorvetes no palito, mas para tanto terá de juntar muito mais dinheiro. É aí que seu caminho rumo à marginalidade começa a se estreitar ainda mais, porque a única alternativa que se apresenta é supervisionar um cartel de drogas na Espanha, reportando-se a Putin, de um Sofian Khammes alguns tons acima do recomendado para o papel. Para orientá-lo nessa nova etapa de sua carreira, ele recorre a Henri, a deixa para Vincent Cassell arejar a história com o personagem, o típico malandro boa-praça, que acaba se dando mal.
Romain Gavras peca pelo excesso, nunca pela falta, mas peca. É louvável sua ambição de elaborar soluções para o crime organizado, para o narcotráfico, para as chagas do sistema capitalista como um todo, mas o assunto exige fôlego, e o de “O Mundo É Seu” é curto demais para isso. Gavras acerta muito mais ao focar nas situações absurdas do longa, em que, mais uma vez, Isabelle Adjani prova que ainda tem muita lenha para queimar, e Karim Leklou está no ponto alto de sua trajetória. O diretor pode chegar aonde quer, talvez pela mesma estrada por onde passou o pai, mas não foi dessa vez. Ainda não.
Filme: O Mundo É Seu
Direção: Romain Gavras
Ano: 2018
Gênero: Comédia/Crime
Nota: 7/10
Informações Revista Bula