Concentração de riqueza, injustiças sociais e destruição ambiental fazem crescer os questionamentos ao modelo capitalista atual; em artigo de opinião, pesquisador avalia que é hora de repensar o contrato social com o capitalismo e numera quais são as saídas possíveis.
‘Abolir o capitalismo’, pede manifestante em um protesto em 1º de maio de 2021 em Berlim — Foto: Getty Images
Quase 250 anos atrás, o economista e filósofo Adam Smith escreveu o livro A Riqueza das Nações, em que descreveu o nascimento de uma nova forma de atividade humana: o capitalismo industrial.
Porém, ele e seus contemporâneos não imaginavam o quanto o novo sistema criaria um acúmulo de riqueza em poucas mãos.
O capitalismo alimentou as revoluções industrial e tecnológica, remodelou o mundo e transformou o papel do Estado em relação à sociedade.
Ele tirou inúmeras pessoas da pobreza nos últimos dois séculos, aumentou significativamente os padrões de vida e levou ao desenvolvimento de inovações que melhoraram radicalmente o bem-estar humano, além de tornar possível a ida à Lua e a leitura deste artigo de opinião.
No entanto, a história do capitalismo não é totalmente positiva.
Nos últimos anos, as deficiências do sistema se tornaram cada vez mais evidentes.
Priorizar ganhos de curto prazo para as pessoas às vezes fez com que o bem-estar de longo prazo da sociedade e do meio ambiente fosse jogado fora, especialmente porque o mundo está lutando ao mesmo tempo contra uma pandemia de coronavírus e as mudanças climáticas.
E como a agitação política e a polarização em todo o mundo demonstraram, há sinais crescentes de descontentamento com o status quo capitalista.
Uma pesquisa de 2020, produzida pela empresa de marketing e relações públicas Edelman, apontou que 57% das pessoas entrevistadas em todo o mundo disseram que “o capitalismo como existe hoje faz mais mal do que bem ao planeta”.
“O desempenho do capitalismo ocidental nas últimas décadas tem sido profundamente problemático em relação à desigualdade e aos danos ambientais”, escreveram os economistas Michael Jacobs e Mariana Mazzucato em Rethinking Capitalism (‘Repensando o capitalismo’, sem versão em português).
Mercados — Foto: Getty Images
No entanto, isso não significa que não haja soluções. “O capitalismo ocidental não está desesperadamente fadado ao fracasso, mas precisa ser repensado”, argumentam Jacobs e Mazzucato.
Então, o capitalismo como o conhecemos continuará em sua forma atual ou poderia ter outro futuro pela frente?
O capitalismo gerou milhares de livros e milhões de palavras, então seria impossível explorar todas as suas facetas.
Dito isso, podemos começar a entender para onde o capitalismo irá no futuro, explorando onde ele começou. Isso nos mostra que o capitalismo nem sempre funcionou como hoje, especialmente no Ocidente.
Entre os séculos 9 e 15, monarquias autocráticas e hierarquias eclesiásticas dominaram a sociedade ocidental.
Esses sistemas começaram a desmoronar à medida que as pessoas afirmavam cada vez mais seu direito à liberdade individual.
Essa busca por um foco maior no indivíduo favoreceu o capitalismo como sistema econômico por causa da flexibilidade que deu aos direitos de propriedade privada, escolha pessoal, empreendedorismo e inovação.
Ele também favoreceu a democracia como um sistema de governo por causa de seu foco na liberdade política individual.
A mudança em direção a uma maior liberdade individual mudou o contrato social.
Anteriormente, os que estavam no poder forneciam muitos recursos (terra, comida e proteção) em troca de contribuições significativas dos cidadãos (por exemplo, de trabalho escravo a trabalho duro com pouca remuneração, altos impostos e lealdade incondicional).
Em 1851, Londres sediou a ‘Grande Exposição das Obras da Indústria de Todas as Nações’ — Foto: Getty Images
Com o capitalismo, as pessoas esperavam menos das autoridades governantes, em troca de maiores liberdades civis, incluindo liberdade individual, política e econômica.
Mas o capitalismo evoluiu de maneira significativa durante os séculos seguintes e especialmente durante a segunda metade do século 20.
Após a Segunda Guerra Mundial, a Mont Pelerin Society, um grupo de especialistas em política econômica, foi fundada com o objetivo de enfrentar os desafios que o Ocidente tinha à vista.
Seu foco específico era a defesa dos valores políticos de uma sociedade aberta, o estado de direito, a liberdade de expressão e as políticas econômicas de livre mercado, aspectos centrais do liberalismo clássico.
Com o tempo, essas ideias deram origem à escola macroeconômica de “economia de abastecimento”.
Ela se baseava na crença de que impostos mais baixos e regulamentação mínima do livre mercado levariam a um maior crescimento econômico e, portanto, melhores condições de vida para todos.
Na década de 1980, junto com a ascensão do neoliberalismo político, a economia da oferta se tornou uma prioridade para os Estados Unidos e muitos governos europeus.
Essa nova tendência do capitalismo levou a um maior crescimento econômico em todo o mundo, ao mesmo tempo que tirou um número substancial de pessoas da pobreza absoluta.
Mas, ao mesmo tempo, seus críticos argumentam que os princípios de redução de impostos e desregulamentação empresarial pouco fizeram para apoiar o investimento político em serviços públicos, enfrentar o colapso da infraestrutura pública, melhorar a educação e mitigar riscos.
Em muitos países, o capitalismo do final do século 20 contribuiu para criar uma lacuna significativa entre a riqueza dos mais ricos e dos mais pobres, medida pelo Índice de Gini.
Protesto no Chile; criação de privilégios é um dos fatores que fizeram crescer os questionamentos ao capitalismo atual — Foto: Getty Images
Em alguns países, essa lacuna está aumentando. Os Estados Unidos são um exemplo: os americanos mais pobres não veem crescimento real da sua renda desde 1980, enquanto a renda dos ultra-ricos cresceu cerca de 6% ao ano.
Quase todos os bilionários mais ricos do mundo residem nos Estados Unidos e acumularam fortunas impressionantes, enquanto, ao mesmo tempo, a renda familiar média no país aumentou modestamente desde o início deste século.
A diferença de desigualdade pode ser mais importante do que alguns políticos e líderes corporativos gostariam de acreditar.
O capitalismo pode ter tirado milhões de pessoas em todo o mundo da pobreza extrema, mas a desigualdade pode ser corrosiva dentro de uma sociedade, diz Denise Stanley, professora de economia da Universidade do Estado da Califórnia.
“A pobreza absoluta é basicamente a situação em que uma pessoa vive com menos de US$ 4 (cerca de R$ 20) por dia (sob os critérios em vigor nos EUA))”, explica Stanley. Ela alerta que a pobreza e a desigualdade podem desequilibrar uma sociedade a longo prazo.
Mesmo que a economia esteja crescendo, a desigualdade de renda e a estagnação dos salários podem fazer com que as pessoas se sintam menos seguras à medida que sua posição relativa na economia diminui.
“Economistas comportamentais mostraram que nosso status em comparação com outras pessoas, nossa felicidade, deriva mais de medidas relativas e de distribuição do que de medidas absolutas. Se isso for verdade, então o capitalismo tem um problema”, diz Stanley.
Como resultado do aumento da desigualdade, “as pessoas confiam menos nas instituições e experimentam um sentimento de injustiça”, segundo o relatório Edelman.
Mas o impacto na vida das pessoas pode ser mais profundo. “O capitalismo em sua forma atual está destruindo a vida de muitas pessoas da classe trabalhadora”, argumentam os economistas Anne Case e Angus Deaton em seu livro Deaths of Despair and the Future of Capitalism.
“Durante as últimas duas décadas, as mortes de desespero por suicídio, overdose de drogas e alcoolismo aumentaram dramaticamente e agora centenas de milhares de vidas de americanos são perdidas a cada ano”, escrevem eles.
A crise financeira de 2007 e 2008 exacerbou esses problemas. A crise foi provocada pela desregulamentação excessiva e atingiu principalmente a classe trabalhadora de países desenvolvidos.
Pobreza e a desigualdade podem desequilibrar uma sociedade a longo prazo — Foto: Getty Images
Depois, os resgates dos grandes bancos feitos pelos governos após a crise financeira de 2008 geraram ressentimento e “ajudaram a alimentar o surgimento da política polarizada que vimos na última década”, de acordo com Richard Cordray, primeiro diretor do US Consumer Financial Protection Bureau (agência de proteção ao consumidor dos EUA) e autor de Watchdog: Como a proteção dos consumidores pode salvar nossas famílias, nossa economia e nossa democracia.
As democracias liberais podem agora estar em um ponto de inflexão, no qual os cidadãos questionam as normas capitalistas de hoje com maior intensidade política em todo o mundo.
J. Patrice McSherry, professor de ciência política na Long Island University, em Nova York, observou essa mudança no Chile, por exemplo.
“A mobilização social dos chilenos começou com um aumento nas tarifas do metrô em outubro de 2019, gerando protestos de base ampla que atraiu mais de um milhão de pessoas às manifestações”, diz ele.
“O movimento social expôs as profundas fontes de descontentamento no Chile: desigualdade arraigada e crescente, o custo de vida sempre crescente e a privatização extrema em um dos Estados mais neoliberais do mundo.”
Essas queixas remontam ao final do século 20, quando a ditadura militar do Chile introduziu reformas que institucionalizaram a dominação econômica e consagraram uma estrutura neoliberal que apagou o papel do Estado nas áreas sociais e econômicas. A participação política deu ao direito (político) poder desproporcional e instalou um papel tutelar para as Forças Armadas”, escreveu McSherry em um artigo para o Congresso Norte-Americano na América Latina, uma organização sem fins lucrativos que acompanha as tendências na região.
Da mesma forma, o movimento de coletes amarelos que começou na França em 2018 inicialmente se concentrou no aumento dos custos do combustível, mas rapidamente se expandiu para incluir reclamações semelhantes às do Chile: o custo de vida, o aumento da desigualdade e uma demanda para que o governo pare de ignorar as necessidades dos cidadãos.
E nos Estados Unidos, o movimento político que gerou o trumpismo é possivelmente impulsionado tanto pela desigualdade econômica quanto pela ideologia de direita.
O governo Trump obteve amplo apoio político por suas abordagens mais fechadas ao comércio mundial, incluindo a retirada do Acordo Transpacífico de Cooperação Econômica e tarifas retaliatórias sobre bens e serviços chineses, indianos, brasileiros e argentinos importados para os Estados Unidos.
Até mesmo os aliados históricos dos Estados Unidos foram o alvo dessa agenda, incluindo Europa, Canadá e México.
Embora uma resposta às desvantagens do capitalismo em sua forma atual seja que as nações adotem uma postura defensiva, buscando se proteger minimizando os laços externos, o protecionismo “é míope, especialmente quando se trata de comércio”, de acordo com Anahita Thoms, chefe da Baker McKenzie’s International Trade Practice, na Alemanha, e do Young Global Leaders, do Fórum Econômico Mundial.
“Embora possa trazer alguns benefícios temporários, no longo prazo (o protecionismo) coloca em risco a economia global como um todo e ameaça desfazer décadas de progresso econômico. Manter os mercados abertos para investimentos é crucial”, disse Thoms.
Um desafio central para os governos no século 21 será encontrar uma maneira de equilibrar esses benefícios de longo prazo do comércio mundial com os danos de curto prazo que a globalização pode trazer às comunidades locais afetadas por baixos salários e pelo desemprego.
As economias não podem ser completamente divorciadas das demandas das maiorias democráticas em busca de empregos, moradia acessível, educação, saúde e um meio ambiente saudável.
Como mostram os movimentos chileno, os coletes amarelos e os trumpismo, muitas pessoas estão pedindo uma mudança no sistema existente para dar conta dessas necessidades, em vez de apenas enriquecer os interesses privados.
Em suma, pode ser hora de repensar o contrato social para o capitalismo, de modo que ele se torne mais inclusivo de um conjunto mais amplo de interesses além dos direitos e liberdades individuais.
Isso não é impossível. O capitalismo já evoluiu antes e, se for para continuar no futuro de longo prazo, pode evoluir novamente.
Os coletes amarelos tomaram as ruas de Paris em protesto contra o governo — Foto: Getty Images
Nos últimos anos, várias ideias e propostas surgiram com o objetivo de reescrever o contrato social do capitalismo.
O que elas têm em comum é a ideia de que as empresas precisam de medidas mais variadas de sucesso do que apenas lucro e crescimento.
Nos negócios, existe o “capitalismo consciente”, inspirado nas práticas das chamadas marcas “éticas”.
Na política, existe um “capitalismo inclusivo”, defendido tanto pelo Banco da Inglaterra quanto pelo Vaticano, que advoga pelo aproveitamento do “capitalismo para o bem comum”.
E na sustentabilidade, existe a ideia da “economia donut”, teoria da economista Kate Raworth, que sugere ser possível prosperar economicamente como sociedade sem deixar de lado as demandas sociais e planetárias.
Depois, há o modelo dos “cinco capitais”, articulado por Jonathan Porritt, autor de Capitalism As If The World Matters.
Porritt pede a integração de cinco pilares do capital humano: natural, humano, social, manufaturado e financeiro, nos modelos econômicos existentes.
Um exemplo tangível de onde as empresas estão começando a abraçar “os cinco capitais” é o movimento B-Corporation. As companhias certificadas cumprem a obrigação legal de considerar “o impacto de suas decisões sobre seus trabalhadores, clientes, fornecedores, comunidade e meio ambiente”.
Suas fileiras agora incluem grandes corporações como Danone, Patagonia e Ben & Jerry’s (que é propriedade da Unilever).
Essa abordagem se tornou cada vez mais comum, refletida em uma declaração de 2019 divulgada por mais de 180 CEOs corporativos, redefinindo “o propósito de uma corporação”.
Protesto no Chile fez crescer discussões sobre justiça social em um dos países mais neoliberais do mundo, diz autor — Foto: Getty Images
Pela primeira vez, os CEOs que representam o Wal-Mart, Apple, JP Morgan Chase, Pepsi e outros reconheceram que devem redefinir o papel dos negócios em relação à sociedade e ao meio ambiente.
Sua declaração propõe que as empresas devem fazer mais do que oferecer benefícios aos seus acionistas.
Além disso, devem investir em seus funcionários e contribuir para a valorização dos elementos humanos, naturais e sociais do capital a que Porritt se refere em seu modelo, ao invés de focar apenas no capital financeiro.
Em uma entrevista recente ao Yahoo Finance sobre o futuro do capitalismo, o CEO da Best Buy, Hubert Joly, disse que “o que aconteceu é que por 30 anos, da década de 1980 a 10 anos atrás, tivemos essa abordagem única sobre os lucros excessivos. Isso causou muitos desses problemas. Precisamos afrouxar esse modelo. Se tivermos uma refundação de negócios, também pode ser uma refundação do capitalismo… Eu acho que isso pode ser feito, tem que ser feito.”
Mais de três décadas atrás, a Comissão Brundtland das Nações Unidas escreveu no documento “Nosso Futuro Comum” que havia ampla evidência de que os impactos sociais e ambientais são relevantes e devem ser incorporados aos modelos de desenvolvimento.
Ora, é óbvio que essas questões também devem ser consideradas dentro do contrato social que sustenta o capitalismo, para que ele seja mais inclusivo, holístico e integrado aos valores humanos básicos.
Em última análise, vale a pena lembrar que os cidadãos em uma democracia liberal capitalista têm poder.
Coletivamente, eles podem apoiar empresas alinhadas com suas crenças e exigir continuamente novas leis e políticas que transformem o cenário competitivo das empresas para que possam aprimorar suas práticas.
Quando Adam Smith observava o nascente capitalismo industrial, em 1776, ele não podia prever o quanto ele transformaria nossas sociedades hoje. Portanto, era aceitável sermos tão cegos quanto ao que o capitalismo se transformaria nos dois séculos seguintes.
No entanto, isso não significa que não devamos nos perguntar como ele pode evoluir para algo melhor no curto prazo. O futuro do capitalismo e de nosso planeta depende disso.
*Matthew Wilburn King é um consultor internacional e conservacionista baseado no Colorado, Estados Unidos, e presidente e diretor da Common Foundation.
Informações BBC – G1