A produção audiovisual espanhola cresce e aparece cada dia mais. “La Casa de Papel” (2017) é decerto o fenômeno que melhor registra a ascensão desse mercado, que parecia pronto para despontar e só esperava a oportunidade mais propícia, leia-se diretores, produtores e, por óbvio, elenco disposto a encampar um jeito novo, mais arrojado, mais pujante, de fazer arte. “Gun City” (2018) vale-se justamente dessa ideia para feedback positivo para cavar seu espaço na preferência do espectador. Dois atores da série ajudam a segurar a história, mas nem precisava. O filme de Dani de la Torre se garante por si só, contando com ainda mais que atores famosos para ser notado.
Na Barcelona de 1921, militantes anarquistas e a polícia se enfrentam em uma série de confrontos. Enquanto a instabilidade política reina, Anibal Uriarte, o policial vivido por Luis Tosar (conhecido entre os colegas como “O Basco”), se infiltra junto aos manifestantes a fim de conhecer o responsável por um roubo de armas que tem o potencial de desencadear uma guerra civil. Uriarte foi enviado de Madrid especialmente para a operação, mas logo se dá conta de que são mínimas as chances de apontar os culpados. Seus colegas misturam interesse público com autopromoção e enriquecimento ilícito sem a menor cerimônia, o que o obriga a ser bem mais austero do que pretendia.
De la Torre é competente em levar algumas tramas em paralelo a partir da apresentação do mote central, como o pleito de Sara, interpretada por Michelle Jenner, uma pioneira do feminismo que defende os direitos das mulheres ao trabalho, ao passo que seu pai, Salvador, personagem de Paco Tous, comanda uma paralisação na fábrica de García Serrano, de William Miller. Os protestos tendem para a balbúrdia, uma vez que nem os próprios manifestantes se entendem; Para Léon, o jovem idealista a que Jaime Lorente dá vida, os métodos de Salvador são suaves demais. As reivindicações do grupo nunca serão ouvidas sem que se adote um posicionamento mais agressivo diante dos patrões. Se isso implicar num banho de sangue, com perdas para ambos os lados, para ele tanto melhor.
Ainda um terceiro núcleo é elaborado pelo diretor, que apresenta o glamour e o submundo da arte na figura do Barão, encarnado por Manolo Solo, a segunda melhor performance do filme. Esse homem ambíguo é, certamente, a definição mais completa da instabilidade e da frouxidão moral daqueles tempos; proprietário de um clube noturno que deve grande parte de seu prestígio aos números sensuais de Lola Montaner, a crooner-dançarina de Adriana Torrebejano, Barão assiste e toma parte de grandes negociações, principalmente as que dizem respeito à Brigada da Informação, uma seção da polícia que deveria fiscalizar estabelecimentos e deter os traficantes e estelionatários que pululam nesse universo, mas que, na prática, funciona como um financiador dessas atividades criminosas, além de outras tantas. Em meio à cortina de fumaça que Barão e a banda podre da polícia deflagram, Uriarte se revela um agente duplo, averiguando o roubo dos armamentos, enquanto repassa aos anarquistas suas descobertas.
Tosar é, sem dúvida, a estrela de “Gun City”, em torno da qual todas as subtramas passam a orbitar. Perseguido por seus fantasmas do passado, Uriarte tornou-se um homem cheio de reservas, que começa a se sentir ameaçado pela proximidade afetiva com Sara, vínculo que não condiz em nada com sua misantropia. A convivência improvável mexe com essas duas almas conflituosas, que lutam para não sucumbir em meio ao lamaçal que os cerca e de que, em maior ou menor proporção, também fazem parte. A participação na Guerra do Rife, a Segunda Guerra Marroquina, travada pela Espanha no Marrocos, entre 1920 e 1927, contra as tribos berberes das montanhas do Rife, o deixara com sequelas na alma e no corpo, que tenta aplacar com morfina; a dançarina-cantora, por seu turno, não se conforma em ter de desempenhar o papel da diva que povoa os sonhos masculinos sem trégua, escravizada pelo Barão, quando só queria ser mãe e casar-se com o pai de seu filho. Sara já vem tentando se livrar do subjugo do empresário há algum tempo, mas sempre acata suas vontades, abdica do namorado da vez e se submete a mais um aborto.
Como se poderia supor, a figura canhestra de Uriarte desperta a desconfiança dos policiais com quem trabalha e, algum tempo depois, Rediú e Tísico, os inspetores comprados pela máfia, descobrem suas verdadeiras intenções. Algo farsescas, as atuações de Vicente Romero e Ernesto Alterio, dão à história o pouco respiro não exatamente cômico, mas que se presta a equilibrar os muitos momentos de tensão e violência, de que quem assiste não consegue se desvencilhar graças à fotografia rica de nuances escuros e frios de Yosu Inchaustegui.
Dotado de planos-sequência que também se fixam na memória do público, bem como de uma trilha sonora sofisticada, com direito a uma ária interpretada com voz potente, “Gun City” pode até ser meio longo demais e dispor de personagens em excesso, cujos arcos restam por serem resolvidos — a esse propósito, Jaime Lorente e Paco Tous, que protagonizam a grande reviravolta do filme, justamente os dois atores de “La Casa de Papel”, hibernam em algum da história por boa parte do tempo. Contudo, o desfecho, poético, com aquele romantismo seco e sem fecho dos grandes clássicos de Hollywood, como “Casablanca” (1942), dirigido por Michael Curtiz, ou “Namorados para Sempre” (2011), de Derek Cianfrance. Esse, sim, é o eixo do trabalho de Dani de la Torre, que desapega do conteúdo sociopolítico para cantar o amor frustrado.
Filme: Gun City
Direção: Dani de la Torre
Ano: 2018
Gênero: Drama/Thriller
Nota: 9/10
Informações Revista Bula