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Foto: Divulgação/ Netflix

Doenças mentais não são brincadeira. Em todo o mundo, há mais de 720 milhões de indivíduos com algum transtorno psíquico, cerca de 10% da população da Terra. No Brasil, campanhas que anatematizaram manicômios foram responsáveis por, na prática, intensificar o sofrimento de pacientes que recebiam algum tratamento nessas instituições; uma vez liberados, seguem para casa, para serem assistidos por parentes que, por mais bem-intencionados, não dispõem de todo o conhecimento para tratá-los de maneira adequada. Ao longo dos anos, começaram a pipocar casos de pessoas que passavam os dias acorrentadas, como feras, porque, privadas de cuidados básicos como terapia e medicamentos, tornavam-se de fato outras pessoas, presas de seus próprios fantasmas existenciais. Decerto eventos como os destrinchados pela jornalista Daniela Arbex em “Holocausto Brasileiro — Genocídio: 60 Mil no Maior Hospício do Brasil”, publicado pela editora Intrínseca em 2020, ajudaram a tornar ainda mais desumana a ideia de submeter doentes mentais a socorro hospitalar em regime de internato. Não sem razão.

Fundado em 1903, o Hospital Colônia de Barbacena, no sudeste de Minas Gerais, angariou uma fama macabra ao sujeitar seus internos a sempre controverso eletrochoque, castigos físicos e isolamento em câmaras diminutas. Homens e mulheres permaneciam soltos no pátio da instituição, nus, e as gravidezes não eram incomuns. Quando isso acontecia, os médicos esperavam que a mãe desse à luz para entregar o bebê à adoção. Aos poucos, as puérperas desenvolveram um método para não terem os filhos levados: esfregar fezes em si e na criança. O horror. Como se fechar hospitais psiquiátricos fosse a saída para resolver o problema do atendimento a pacientes em sofrimento mental, e não a constante atualização dos métodos, pautados por vigilância e profissionais bem treinados. O Brasil é um caso perdido.

Tratando a evidência inescapável das patologias de fundo nervoso como uma comédia das mais inteligentes do cinema, o diretor espanhol Vicente Villanueva compõe em “Toc Toc” (2017) um mosaico multicolorido sobre o que é ter atividades básicas do cotidiano, como ir ao trabalho ou comparecer a um encontro amoroso, tolhidas por manias e desvios comportamentais. Concebida originalmente como um texto para o teatro, a peça do escritor francês Laurent Baffie foi adaptada para o cinema por Villanueva, que para falar de assuntos que permanecem tão graves, se vale da máxima latina popularizada por outro dramaturgo, o português Gil Vicente, (1465-1536) e pune os costumes pelo riso.

O mote central do roteiro é o atraso de um médico — que, conforme se vai assistir, não é aleatório —, capaz de provocar verdadeiro pandemônio entre seis pessoas diagnosticadas com os mais variados gêneros de psicopatologias. Enquanto esperam o misterioso doutor Palomero, os seis passam o tempo falando sobre a rotina nada normal de cada um, avaliam quem está melhor ou pior e fazem força para tolerar as loucuras um do outro, sem saber por quanto tempo vão conseguir aguentar esse tormento sem traumas adicionais. Aparentemente, a confusão se deve ao pouco traquejo da secretária Tiffany, de Inma Cuevas, com o novo software instalado no computador do consultório que agendou todas as consultas para as quatro e meia. Federico, interpretado com o vigor de sempre por Oscar Martínez, é o primeiro a chegar, seguido por Blanca, de Alexandra Jiménez, uma técnica de laboratório maníaca por limpeza. A sequência que marca o encontro inusitado dos dois, de um humor bastante refinado, deixa claro ao espectador que aquelas pessoas estão mesmo precisando de ajuda. Algum tempo depois aparecem Emilio, de Paco León, taxista obcecado por números e cálculos, capaz de realizar qualquer operação matemática de cabeça; a carola Ana María, que nunca sai de casa sem que confira reiteradas vezes se desligou as luzes, fechou as torneiras, bloqueou o registro do gás e apagou as velas que ardem diante da imagem de seus santos de devoção, se benzendo a todo instante. Completam o grupo a instrutora de academia Lili, de Nuria Herrero, que como seu nome sugere, repete sílabas, palavras e frases inteiras entre e outro arroubo de movimentos com a cabeça e escapes de estalidos com a língua; e o elástico Otto, com o clássico problema de não conseguir pisar sobre listras, a porção de comédia física em “Toc Toc”, levada com graciosa maestria por Adrián Lastra.

Quando estão todos reunidos na antessala do tal doutor Palomero, Villanueva começa a dinâmica de seu trabalho, ou seja, fazer que seus personagens enxerguem a ausência do médico como a oportunidade ideal para expiar suas angústias diante uns dos outros, como numa terapia em grupo, a fim de tentar achar uma solução alternativa às consultas periódicas. Apostando alto na metáfora da união que faz a força, o diretor desnuda seus seis adoráveis doidinhos, que mesmo protagonizando atritos pontuais, até que se portam bem. Na iminência do desfecho, Federico, Blanca, Emilio, Ana María, Lili e Otto, notam que a inadequação social que seus respectivos transtornos geram na vida de cada um tem igual matriz: a necessidade, desprezada pelos ditos normais, de pertencer a um grupo, arco que o diretor fecha de uma maneira um tanto simplória, e inteligente mesmo assim.

Nas cenas exibidas ao longo dos créditos finais, “Toc Toc” mostra que esse sexteto tornou-se menos louco, mais próximo do mundo real e gozando de mais possibilidades de serem, afinal, aceitos. Não querem nada de excepcional. Só serem vistos mais de perto.


Filme: Toc Toc
Direção: Vicente Villanueva
Ano: 2017
Gênero: Comédia
Nota: 9/10

Informações Revista Bula

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