Com aumento do valor da testosterona desde setembro de 2022 em até 380%, homens transexuais se viram obrigados a interromper o tratamento hormonal e acompanham retrocessos em seus corpos, como queda de pelos e retorno do ciclo menstrual.
A alta no preço ocorreu devido uma liminar do TRF1 (Tribunal Regional Federal da 1ª Região), que permitiu à farmacêutica brasileira EMS reajustar o valor de comércio do medicamento Deposteron (cipionato de testosterona), de fabricação própria.
A substância é utilizada em casos de hipogonadismo masculino, doença relacionada ao mau funcionamento dos testículos que causa deficiência de testosterona, e por homens trans para terapia hormonal —nessa situação, a recomendação é que o hormônio seja aplicado a cada 21 dias.
Para 2022, a CMED (Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos) estabeleceu ajuste máximo de 10,89% nos preços de produtos farmacêuticos.
De acordo com a tabela de preços ao consumidor divulgada em abril pelo grupo, o Deposteron deveria custar em torno de R$ 52,55 em estados como São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais, considerando o ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias) de 18%.
A tabela de dezembro, no entanto, mostra R$ 252,49. Não há previsão de que a decisão seja revista, segundo as partes, o que gera problemas imediatos para os usuários do medicamento.
É o caso de Aron Giovanni de Oliveira, 22. Formado em ciências sociais, ele vive em Goiânia e está desempregado. Afirma que a última dose de testosterona que recebeu foi em setembro, quando teve de interromper o tratamento hormonal devido à alta no preço do medicamento.
De lá para cá, ele percebeu mudanças em seu corpo, como o retorno da menstruação. Oliveira diz que reconhece que é uma situação temporária, mas lamenta que impacte não apenas seu bem-estar como seu trânsito na cidade.Segundo ele, essa é segunda vez que precisa parar o tratamento porque o valor não cabe no seu orçamento. Na primeira, lembra que enfrentou um processo depressivo forte. Agora, enfrenta a situação de forma mais confiante devido a ganhos na sua identidade visual, como pelos no rosto —que ficaram mais finos, mas não desapareceram. A volta da menstruação, porém, tem sido difícil.“Perceber que eu estou regredindo nas minhas características sexuais me traz medo, além de desconforto comigo mesmo, porque eu não me sinto seguro”, diz ele. Oliveira conta que, devido ao tratamento, não consegue mais entrar em um banheiro feminino porque é considerado um corpo estranho nem em um masculino porque é um corpo vulnerável.
“Além de lidar comigo mesmo e minha autoestima, o meu maior medo são as questões de segurança”, diz Oliveira. Ele defende que o acesso ao medicamento é uma demanda coletiva, que se refere a direitos humanos. “Vivemos no país que mais assassina pessoas trans. Esse é um direito básico, se trata de vidas e de querer estar vivo.”As mudanças no corpo de Oliveira são semelhantes às de outras pessoas transexuais que tiveram que interromper o tratamento hormonal.De acordo com o médico ginecologista Sérgio Okano, professor na Universidade de Ribeirão Preto e médico-assistente do Ambulatório de Incongruência de Gênero da USP, há pioras nos sintomas de disforia de gênero, o sofrimento provocado pela discordância entre seu sexo biológico de nascimento e sua identidade de gênero.
Além da questão da saúde mental, Okano diz que nem todos os pacientes apresentam o retorno do sangramento quando o período de interrupção da terapia é curto. Porém, quanto maior o tempo sem tomar o hormônio, maior a probabilidade do retorno do ciclo menstrual.
Outras mudanças que podem ocorrer é a perda de massa magra, principalmente para aqueles que se dedicam a atividades físicas e adquiriram musculatura. Em relação aos pelos, o que acontece é a diminuição do crescimento e possível afinamento. A voz, no entanto, não fica menos grave, explica o médico.
Segundo Okano, faltam pesquisas e dados referentes aos possíveis danos físicos que a interrupção do tratamento pode acarretar. “A chance de o paciente desenvolver complicações são superiores em quem faz suspensões intermitentes em relação àqueles que já fazem o uso mais contínuo”, explica.
O medicamento não é distribuído pelo SUS, afirma o ginecologista, que relata que algumas cidades conseguem comprar o hormônio por meio de parcerias com empresas ou em pregões. “É uma briga que precisa acontecer porque esse tratamento é essencial para a pessoa trans adquirir essas características. Não há outra forma de se fazer isso.”
Estagiário na área de recursos humanos de uma empresa em Paranapiacaba (SP), Rafael Silva Pinto, 38, recebe uma bolsa de R$ 900 mensais, o que torna o tratamento inviável. Ele fazia a hormonização regularmente havia nove anos.
Apesar do incômodo com o sangramento, ele diz que hoje tenta lidar melhor com a situação graças à terapia. “Tenho plena consciência que sou uma pessoa que menstrua, mas não deixo de ser homem. É bem chatinho, mas acho que vai melhorar”, diz ele, que considera que a falta de acesso ao remédio é mais uma das violências sofridas pela população transexual.
Nicholas Iqueda, 23, se viu sem recursos para obter o hormônio e acabou deixando de tomá-lo por oito meses, após quatro anos de tratamento.
“Mexeu com meu emocional estar com essa falta de hormonização”, conta. “Não achei que poderiam voltar a acontecer algumas coisas, como sangrar. Eu tinha prometido para mim mesmo que eu nunca mais iria passar por isso porque eu vivia momentos horríveis durante o meu ciclo.”
Porém, em novembro, o ciclo menstrual retornou. “Fiquei dias sem falar com a minha namorada, falei coisas absurdas, me diminuindo como homem e me sentindo inferior. Comecei a duvidar de mim mesmo, se eu era homem o suficiente”, relembra.
Em dezembro, ele conseguiu comprar um hormônio mais concentrado que o Deposteron, o undecilato de testosterona, que possui intervalo de três em três meses. Mesmo que continue desempregado, ele diz que não vai deixar mais de tomar o medicamento.
“Vou conseguir outro emprego, mesmo se não conseguir, vou me virar para conseguir tomar o remédio”, diz ele, que ainda está pagando parcelado a dose do hormônio que tomou em dezembro.
Sobre o aumento de preços, a farmacêutica EMS, fabricante do Deposteron, diz que o medicamento obteve registro sanitário em 1992, período anterior à criação da CMED. “Por causa disso, o Deposteron possuía um teto inicial de precificação que seguiu defasado por todo esse período. Somente em agosto de 2022, para estar de acordo com as condições e os mesmos critérios da atual legislação, o preço do Deposteron passou por uma adequação junto aos órgãos competentes”, afirmou em nota em setembro.
Créditos: Folha de S. Paulo.