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Isabella dos Santos cresceu na França, mas nunca conseguiu se sentir realmente em casa naquele país. Estranhava não se parecer com ninguém de sua família e sempre que questionava a mãe sobre a sua origem, ouvia histórias desencontradas.

Ela sabia que tinha nascido no Brasil e sido adotada pelos pais franceses, mas nunca conseguiu precisão sobre como e em que circunstâncias tinha sido adotada. A mãe chegou a dizer que ela havia sido encontrada no lixo, depois abandonada em uma caixa de sapato, e também dizia que foi deixada em um orfanato.

Depois de muitas idas e vindas da vida, Isabella descobriu que foi vítima de tráfico humano, que atende a três principais finalidades: o trabalho análogo ao escravo, a exploração sexual e a adoção ilegal, que era o seu caso.

Segundo Graziela Rocha, coordenadora de projetos da Associação Brasileira de Defesa da Mulher, da Infância e da Juventude (Asbrad) e membro do Comitê Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (Conatrap o tráfico de pessoas passa por três etapas: o aliciamento, o transporte das pessoas e a exploração final.

Os aliciadores, segundo ela, buscam oferecer propostas que condizem com os interesses das vítimas. “Eles reconhecem o sonho da pessoa, criam uma relação de confiança e qualquer pessoa, independente da classe social e do grau de escolaridade, pode ser vítima”, diz ela a Ecoa.

Apesar de qualquer pessoa poder se tornar vítima, Graziela explica que os números apontam que a população em pobreza é mais vulnerável. E parecia ser o caso de Isabella. Ela descobriu que sua mãe biológica trabalhava como faxineira para uma mulher que a teria roubado e a vendido para estrangeiros.

‘Não me sentia nem tão humana’

Inconformada com a falta de informações sobre o seu passado, Isabella conta que começou a procurar pistas em sua casa. Um dia que a mãe saiu, ela encontrou no escritório uma pasta com o nome Charlotte, seu nome francês.

Lá dentro, descobriu exames de sangue que datavam de antes de seu nascimento e com um nome brasileiro. Também encontrou comprovantes de pagamento e uma certidão de nascimento em que constava seu nome já em francês.

Quando ela [mãe adotiva] ficava com raiva de mim, falava: “Você foi achada no lixo. ”Isabella dos Santos

Isabella recebeu o nome de Charlotte da família adotiva, que a levou para a França
Isabella recebeu o nome de Charlotte da família adotiva, que a levou para a França Imagem: Arquivo pessoal

De acordo com ela, a única informação que conseguiu ao confrontar sua mãe adotiva foi a de que sua mãe biológica era jovem e não podia cuidar dela, por isso foi entregue para uma mulher chamada Guiomar, que a levou para a França.

Isabella chegou a ligar para o orfanato Lar da Criança Menino Jesus, vinculado ao nome de Guiomar, mas nunca conseguiu um contato com ela.

Após finalizar seus estudos, ela conta que foi fazer um intercâmbio em Barcelona, na Espanha, e lá morou com brasileiros. Decidiu aprender melhor a língua portuguesa para poder vir ao Brasil e buscar respostas. Em 2012, com 25 anos, mudou-se para o Rio de Janeiro.

História foi parar na novela

Isabella contou sua história para a novela ‘Salve Jorge’, da Globo, que abordava o tráfico de pessoas. Na época, seu caso ganhou visibilidade com a repercussão em outros veículos de notícia.

Isso fez com que ela fosse chamada pela Polícia Federal de São Paulo para dar depoimento em uma investigação sobre tráfico de crianças. De acordo com Isabella, a PF chegou a ouvir Guiomar Morselli, que já havia sido denunciada por outros depoentes como possível aliciadora, mas o caso foi arquivado pela prescrição dos crimes.

A minha mãe [biológica] nunca quis que eu fosse adotada. ”Isabella dos Santos

Também pela repercussão do seu caso, Isabella passou a receber mensagens de pessoas com histórias semelhantes, que envolviam o nome de Guiomar. Ao reparar que a maioria dos documentos apontava a Maternidade de São Paulo como local de nascimento das crianças, ela foi até lá procurar por seus registros e alguma pista de sua família.

Em 2016, conseguiu encontrar na maternidade exames com dados que batiam com os dela, como a data de nascimento e o endereço de sua mãe biológica, que correspondia com o colocado em sua certidão de nascimento. O nome dela era Jacira Lima dos Santos, e ela 21 anos quando deu à luz Isabella.

Quando Isabella descobriu a sua história e encontrou a sua família, a sua mãe biológica já tinha morrido
Quando Isabella descobriu a sua história e encontrou a sua família, a sua mãe biológica já tinha morrido Imagem: Arquivo pessoal

Mãe era faxineira de aliciadora

A partir do nome da mãe, ela encontrou uma mulher que seria a sua irmã. E foi ela quem lhe contou que Jacira trabalhava como faxineira na casa de Guiomar e também morava na residência.

Com ela teve Isabella, a patroa disse que ela deveria encontrar um lugar para a bebê ficar, pois não a queria ali. Para que Jacira pudesse encontrar um local para Isabella ficar, Guiomar ficou com a criança por um dia. Mas quando Jacira retornou, ela tinha sumido com ela.

Um teste de DNA confirmou a sua identidade em 2017. Ela conta que o evento mais marcante foi quando viu uma foto de sua mãe pela primeira vez. “Foi como se meu coração, que estava todo quebrado, tivesse se reconstituído”.

Ao descobrir que tinha uma mãe, um nome e uma família, Isabella disse que tudo mudou. “Porque quando você sabe que foi amada, você sente que é humana”.

Depois de conseguir as suas respostas e, finalmente, conhecer as suas origens, Isabella passou a ajudar pessoas com histórias parecidas a encontrarem suas famílias.

Você sempre se sente como um estranho, você não pertence nem ao Brasil, nem àquele lugar. ”Isabella dos Santos

Em sua página “Em busca de minha mãe no Brasil” no Facebook, ela compartilha a sua história e outras semelhantes para conscientizar a sociedade sobre o tema. “E para impedir que o presente repita o passado”.

Em agosto de 2017, Isabella voltou para a França para cuidar de seu pai adotivo, que estava doente. Nos últimos anos em que esteve no Brasil, ela trabalhou como professora de francês, atividade que continua exercendo na França, além de trabalhos como intérprete e tradutora. Em 2020 seu pai adotivo morreu e hoje ela pensa em retornar para o Brasil.

Combate ao tráfico humano

Segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), em 2022 aumentou a proporção de crianças traficadas no mundo. O relatório Global sobre Tráfico de pessoas apontou que cerca de 50 mil vítimas foram detectadas e denunciadas em 148 países em 2018.

O combate a esse crime passa pela prevenção, segundo Graziela Rocha, da Asbrad. “Desconfie de propostas encantadoras”, alerta ela, que também aconselha que sejam feitas avaliações cuidadosas de ofertas de trabalho que prometem rendimentos acima do mercado e de oportunidades que exijam deslocamentos nacionais ou internacionais, por exemplo.

Além disso, a especialista ressalta a importância da denúncia, que pode ser feita pelo Disque 100. Conforme o Relatório Nacional sobre Tráfico de Pessoas feito pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública, o Disque 100 recebeu 255 denúncias de tráfico de pessoas entre 2017 e 2019. Destas, uma em cada cinco eram de adoção ilegal, como o caso de Isabella.

Informações ECOA UOL

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