Ninguém da polícia, da administradora do prédio ou do governo verificou se a mulher estava viva ou morta, apesar das reclamações dos vizinhos.
Audrey diz que os vizinhos fizeram tudo o que podiam para alertar que algo havia acontecido com Sheila — Foto: BBC
Atenção: esta reportagem contém detalhes perturbadores
O caso de uma mulher que morreu e cujo corpo ficou dois anos e meio dentro do seu apartamento — sem que ninguém descobrisse — revoltou moradores de um prédio em Londres.
Eles moram em um prédio administrado por uma associação habitacional — entidades privadas e sem fins lucrativos que fornecem moradias de baixo custo a pessoas com necessidades financeiras no Reino Unido.
A Peabody, associação habitacional que administrava o prédio em Londres, chegou a pedir que o governo pagasse diretamente o aluguel da moradora morta. Ninguém do governo, da polícia ou da administradora sequer checou se ela estava viva ou não, e o aluguel foi pago por meses.
A BBC conversou com os moradores do prédio para tentar entender como uma pessoa pode morrer e, por mais de dois anos, ninguém descobrir o corpo. Os moradores estão avaliando se entram com um processo contra a Peabody.
Audrey mora desde 2018 em Lord’s Court, um moderno bloco de apartamentos de três andares em Peckham, bairro no sul de Londres.
Ela se lembra claramente do dia em que a polícia arrombou a porta do apartamento em frente ao dela.
“Assim que a porta foi aberta, eu sabia que algo ruim havia acontecido. Você podia ver isso nos rostos dos policiais”, diz Audrey.
Dentro do organizado apartamento de um quarto, a polícia encontrou os restos mortais da secretária médica Sheila Seleoane, de 58 anos. O que havia restado dela era pouco mais que um esqueleto — vestida com calças de pijama azuis e uma blusa branca. A polícia disse que ela não foi assassinada.
Dentro da geladeira, uma sobremesa deu um indício de quanto tempo seu corpo estava ali. A sobremesa havia expirado há dois anos e meio.
Para os vizinhos de Sheila, há muito tempo era óbvio que alguma coisa estava errada.
Semanas após a morte de Sheila, em agosto de 2019, Chantel*, que morava no apartamento logo abaixo, trocou as lâmpadas. Quando ela removeu a lâmpada velha, larvas caíram do teto. Nas semanas seguintes, o problema só piorou.
“Havia larvas no quarto, na sala e no banheiro. E mais ou menos em todos os meus móveis”, lembra ela. “Você sentava no sofá e depois de um tempo encontrava uma larva esmagada”, diz ela. “Foi como viver em um filme de terror.”
Chantel, que nos pediu para não usar seu nome verdadeiro, diz que ligou para a Peabody, a associação habitacional que administra o prédio, mas foi informada de que a entidade não lidava com larvas.
“É muito triste que alguém possa estar em seu apartamento por tanto tempo e não ser encontrado. Ninguém estava sequer se esforçando para entrar em contato com ela”, diz ela.
Ela não foi a única vizinha a levantar preocupações ao longo dos meses seguintes.
Audrey se lembra de voltar de uma viagem de trabalho e sentir um fedor desagradável “como o de um cadáver” ao pegar o elevador até o terceiro andar.
“Isso me fez sentir mal”, diz ela. “Foi simplesmente horrível.”
Um relatório identificou que houve várias ‘oportunidades desperdiçadas’ para se encontrar o corpo de Sheila — Foto: BBC
Outros vizinhos do mesmo andar dizem que tentaram colocar toalhas e lençóis embaixo da porta para tentar impedir que o cheiro se alastrasse.
“Não conseguíamos nem dormir no apartamento. Não dava nem para comer porque o cheiro era muito, muito ruim”, diz Donatus Okeke, que mora em um apartamento de dois quartos com sua esposa Evelyn e seus três filhos.
A todos, ficou claro que Sheila não estava mais morando no local. Sua correspondência começou a transbordar de sua caixa de correio e seu capacho — encostado em sua porta por faxineiros — nunca foi recolocado no seu lugar.
Evelyn diz que ligou para a Peabody “muitas vezes”.
Ela me mostra um registro escrito da primeira ligação — em 10 de outubro de 2019 — dois meses após a morte de Sheila.
Iyesha, outra vizinha do mesmo andar, também procurou a Peabody várias vezes. “Eu continuei ligando dizendo que havia um cheiro de morte”, diz ela. “Ninguém veio.”
Audrey diz que os vizinhos fizeram tudo o que podiam para alertar a associação habitacional. Ela diz ter ficado tranquilizada quando, na linha de atendimento ao cliente, a Peabody disse que alguém investigaria a situação.
“Essa é a única coisa que eu lamento — que eu acreditei na Peabody. Eu lamento não ter chamado a polícia mais cedo, porque eu apenas confiei que eles iriam fazer algo.”
A Peabody disse à BBC que a associação ficou “arrasada” com o que aconteceu com Sheila e que foi “transparente sobre o que deu errado”.
Sheila pagava o aluguel em dia desde que se mudara para o apartamento, em 2014 — Foto: BBC
Mas por que Sheila não foi descoberta antes de fevereiro de 2022?
Depois que ela morreu, seu aluguel parou de ser pago. A Peabody enviou cartas, e-mails e mensagens de voz. Mas no ano seguinte, ninguém a visitou para ver como ela estava. Isso apesar de ela sempre pagar o aluguel em dia desde que se mudara para o apartamento em 2014.
Em vez disso, sem ter falado com Sheila, a Peabody solicitou ao governo um benefício no nome dela. O auxílio é destinado a inquilinos que têm dificuldades para pagar suas contas.
O pedido foi bem-sucedido, e em março — sete meses após a morte de Sheila — seu aluguel estava sendo pago pelo governo diretamente para a Peabody.
Em abril de 2020, venceu o certificado de segurança do gás — uma obrigação anual para os proprietários. Quando os inspetores da Peabody não puderam entrar no apartamento, novamente ninguém da administradora fez nada. Em vez disso, a associação habitacional escreveu cartas para Sheila e depois cortou o fornecimento de gás.
Um ano depois de sua morte, a Peabody finalmente visitou o prédio diante das inúmeras reclamações dos vizinhos. A associação pediu à polícia que verificasse como estava Sheila, mas quando os policiais bateram em sua porta e ninguém respondeu, a administradora decidiu que não tinha justificativa suficiente para entrar no apartamento.
Um erro do operador da polícia agravou ainda mais o problema: uma mensagem falsa foi enviada à Peabody dizendo que Sheila havia sido avistada. Depois disso, foram mais 16 meses até que o corpo de Sheila fosse descoberto. A polícia de Londres pediu desculpas e disse que o operador responsável só não foi investigado porque já havia se aposentado.
Ainda assim, diante de diversas evidências e reclamações, em nenhum momento ninguém da Peabody havia tentado visitar Sheila.
Um relatório independente encomendado pela Peabody afirma que houve várias “oportunidades desperdiçadas” de se encontrar o corpo de Sheila antes.
O documento disse que a metodologia de trabalho de Peabody fez com que todos os incidentes — como as reclamações dos vizinhos e a verificação de segurança de gás — fossem tratados isoladamente.
A associação habitacional “parece não ter percebido os gatilhos, ouvido… os vizinhos ou ligado os pontos”, diz o relatório. O documento diz que a Peabody tem uma cultura burocrática e “orientada por metas” que “não coloca o cliente no centro das suas ações”.
Outro problema é que poucos gerentes da Peabody supervisionavam muitos imóveis, e não davam conta de todos os problemas.
As associações habitacionais costumam dividir os apartamentos e casas que administram em grupos. Cada grupo tem um gerente de bairro ou oficial de habitação cujo trabalho é lidar com os problemas e preocupações dos residentes.
Mas, enquanto os tamanhos típicos desses grupos são de 250 a 500 propriedades, na Peabody cada gerente supervisionava de 800 a mil propriedades naquela época.
A Peabody disse à BBC News que, desde que o corpo de Sheila foi encontrado, a entidade reduziu o tamanho médio dos seus grupos para cerca de 500 propriedades.
Os vizinhos de Sheila em Lord’s Court dizem que ela era “reservada” e “tímida”, mas amigável — Foto: BBC
Charlie Trew, da organização não-governamental Shelter, diz que as associações habitacionais estão sob pressão crescente por causa de “problemas fundamentais com o modelo de financiamento”.
Ele disse que os cortes do governo desde 2010 forçaram as associações habitacionais a encontrar financiamento alternativo, muitas vezes por meio da construção e venda de casas particulares para financiar o custo de construção de casas sociais.
“Isso resulta em uma experiência pior para o inquilino, porque essas associações habitacionais estão cada vez mais focadas no desempenho financeiro de sua organização do que na experiência do inquilino”, diz ele.
Um porta-voz do Departamento de Habitação, Comunidades e Governo Local disse: “O trágico evento em torno da morte de Sheila Seleoane joga luz nos impactos totalmente devastadores dos administradores sociais que ignoram seus inquilinos”.
Charlie Trew, da Shelter, diz estar preocupado com o fato de que, à medida que as associações habitacionais se fundem e se concentram mais no lucro, os inquilinos às vezes podem ser tratados como “um problema, ou uma questão, uma tarefa da qual precisam se livrar”.
“Essa cultura fundamental precisa mudar para que as associações habitacionais, mais uma vez, priorizem a saúde e o bem-estar de seus inquilinos, ouçam-nos e sintam que têm o dever de cuidar para garantir que seus inquilinos tenham uma vida feliz e gratificante.”
Outro fator que explica por que Sheila não foi encontrada antes é a sua solidão.
Um vídeo de seu funeral mostra apenas uma pessoa parada na frente de um crematório vazio — seu meio-irmão Viktor, que disse que não falava com ela há anos. Outra pessoa — um representante da Peabody — chegou atrasada.
Nenhuma outra família. Nenhum amigo.
Sheila trabalhava para uma agência, então é provável que ela não tivesse um local de trabalho fixo ou colegas.
E pesquisas online revelam uma presença muito limitada nas redes sociais. Uma postagem no Facebook de 2012 sugere que ela estava procurando por um antigo amigo de escola com quem havia perdido contato. “Não consigo me lembrar do seu endereço e cometi o erro de não anotá-lo”, escreveu ela. Ninguém respondeu.
O Escritório de Estatísticas Nacionais diz que cerca de 7% dos adultos britânicos se sentem solitários com frequência.
Alguns estudos científicos sugeriram que a solidão pode aumentar a chance de uma morte prematura.
Não sabemos como Sheila morreu, mas seus registros médicos sugerem várias complicações de saúde.
Seus vizinhos dizem que ela era “reservada” e “tímida”, mas amigável. Eles a cumprimentavam na escada, mas não a conheciam.
“Isso me fez olhar para meus vizinhos e minha comunidade de uma maneira diferente”, diz Audrey. “Devemos realmente cuidar das outras pessoas.”
Em nota, a Peabody disse que não fez o suficiente para entender a situação.
“Escrevemos e telefonamos repetidamente sem reconhecer que isso não era suficiente”, disse um porta-voz.
A Peabody disse que mudou a forma como investigava as reclamações. A cobrança do aluguel e as verificações de segurança do gás também mudaram como resultado do caso de Sheila.
A organização admitiu que seu relacionamento com os moradores de Lord’s Court era ruim e disse que pediu desculpas a eles.
Apesar dos esforços da Peabody para melhorar, os vizinhos de Sheila ainda se dizem traumatizados. A BBC descobriu que eles estão conversando com advogados e avaliando processar a Peabody.
Audrey diz que o prédio desencadeia memórias horríveis daqueles dois anos e meio vivendo a poucos metros de um cadáver e suas múltiplas tentativas de alertar a Peabody.
“Eu sempre me perguntei o que estava acontecendo atrás daquela porta”, diz ela.
“Eles não sabem as noites sem dormir que passamos depois disso e como isso nos afetou”, diz Audrey. “Ainda me afeta toda vez que saio de casa — vejo o apartamento de Sheila e me lembro constantemente do que aconteceu lá.”
Evelyn e sua família também estão tentando ir embora. Desde que o corpo de Sheila foi descoberto, o filho de 12 anos de Evelyn, Chialuzue, tem tido insônia e seu desempenho na escola piorou. Ela atribuiu ao que aconteceu com Sheila.
“Estamos sendo negligenciados. Eles não se importam conosco. Eles só se preocupam com o dinheiro e nada mais”, diz ela.
A Peabody disse que havia uma escassez desesperada de habitação social em Londres, mas que iria checar qual outro apoio poderia oferecer a Audrey e Evelyn.
*Nome fictício, a pedido da entrevistada
Informações BBC