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Foto: Paula Fróes/ Correio

Só há seis anos, Edvaldo Mendes Araújo, 69 anos, consegue responder a uma pergunta que o atormentava desde os 10, quando imaginava suas origens no continente África. Tudo muda depois da revelação de quem se é. “Não sou filho de escravo. Sou filho de africano”, diz o arquiteto ao menino Zulu, apelido dado a ele pelos amigos na infância, na comunidade do Solar do Unhão.

No dia 20 de dezembro de 2015, Zulu Araújo, como ficou conhecido, desembarcou em Bankim, na República dos Camarões. Era o primeiro a refazer a rota entre Salvador e aquele ponto de partida das suas raízes familiares, manchadas pelo afastamento imposto pela escravidão. Zulu já tinha ido a sete países africanos, mas a viagem seria diferente.

Zulu foi a Bankim, nos Camarões, em 2015 (Foto: Ana Lúcia Albuquerque/CORREIO)

Recepcionado por 2,5 mil pessoas em uma cidade com, à época, 10 mil habitantes, o arquiteto e presidente da Fundação Pedro Calmon recebeu as honras do rei da etnia Tikar.

“Indo para lá eu reencontrei com meu passado, com meus ancestrais. Isso foi algo extremamente importante para a minha vida. Voltei mais tranquilo do ponto de vista antropológico, do ponto de vista da minha origem, do meu entendimento de mim mesmo. Eu voltei absolutamente tranquilo de que verdadeiramente eu não sou filho de escravo. Eu sou filho de africano. A tranquilidade que isso me deu foi fantástico”, conta. 

Em 300 anos de tráfico de africanos, capitaneado pela Coroa portuguesa entre os séculos 16 e 19, ao menos 4,9 milhões de pessoas embarcaram rumo ao terror no Brasil. Delas, 1,5 milhão desceram na Bahia, majoritariamente retiradas de países como Guiné Bissau, Togo, Benim, Nigéria, Congo, Angola e Moçambique. 

Das mais de 11,4 mil viagens, 9,2 mil delas terminaram no Brasil – 175 navios negreiros saíram de Camarões, onde Zulu redescobria sua identidade. Nenhum outro país do mundo recebeu quantidade tão expressiva de escravizados.

A escravidão foi revestida de tentativas de apagar de identidades, contra as quais resistiram os escravizados. É em busca dessa origem ofuscada que, hoje, negros brasileiros descendentes da diáspora africana partem em viagens ao continente africano. 

O reencontro: do apagamento à busca

Antes de serem embarcados em tumbeiros, homens, mulheres e crianças eram submetidos a um ritual chamado “árvore da lembrança”: todos contornavam árvores na saída dos portos em sinal de abandono do passado e da incorporação da fé católica. 

Nesta terra inventada como Brasil, africanos eram despidos de direitos, entre eles, nome e sobrenome, substituídos por novos, escolhidos por quem que se dizia dono de gente. De Kehindes passavam a Luísas. 

“O sobrenome é o que dá o nosso ‘de onde viemos’, que é perpassado pela família. Eu costumo dizer que os donos do poder da história do Brasil sabem muito disso e, por isso, disputam essa narrativa histórica muito forte, e a população talvez não tenha ainda se alertado de quanto é importante”, explica Clíssio Santana, doutorando em História Social

Não à toa estão aos montes no Brasil os da Silva, de Souza, e correlatos – a Associação dos Registradores Civis (Arpen) não estima quantos. A partícula ‘de’ remete à posse. Esse era um dos maiores incômodos de Zulu.

“Eu não conseguia entender porque todo mundo tinha seus sobrenomes alemães, ingleses, franceses e nós não sabíamos qual era a nossa origem. Meu sobrenome, por exemplo, Mendes Araújo, eu vim saber, já na minha adolescência, que era o sobrenome daqueles que escravizaram meu ancestrais. Eram sempre nomes que não tinham a ver com nossa origem, e o argumento era que não se sabia de onde tinham vindo os escravizados para o Brasil”, relembra Zulu.

Mas sabiam. Em 2013, ele descobriu, depois de ser convidado para integrar o projeto Brasil: DNA África, que submeteu 150 pessoas a exames de DNA – em Salvador, eles custam R$ 799. O filme homônimo, lançado em 2016, é resultado dessa pesquisa. O primeiro a rumar ao continente africano seria Zulu, dois anos depois, como descendente dos Tikar.  

Zulu, à esquerda, em Bankim (Foto: Acervo Pessoal/Zulu Araújo) 

Durante duas semanas, Zulu conversou com os moradores locais e fez perguntas ao rei Gain Brain. Uma delas, no primeiro café da manhã da estadia, chocou: “Que razões tinham levado a realeza de Bankim a vender os seus filhos ao continente americano?”.

A questão de Zulu ainda divide pesquisadores e o movimento negro. Há evidências da existência, no passado colonial, do comércio de pessoas por alguns africanos, mas em bem menor escala que o tráfico protagonizado por portugueses. A resposta esperada por ele veio no desjejum seguinte. 

“Me explicaram que era comum naquele reinado, que aqueles que eram derrotados na guerra, que cometiam crimes, que desobedeciam às regras serem punidos com a escravização, no próprio reino ou vendidos. Mas que o rei reconhecia que tinha sido um erro e que, portanto, a única forma que tinha de fazer a reparação era me acolher enquanto filho daquela realeza”, conta Zulu.

Reconhecido como filho, recebeu o direito de se casar no local e um terreno de dois hectares. Como não pretende residir em Camarões, o “terreno ficará para os descendentes”, brinca Zulu. Sobre a própria herança da viagem, ele fala em “duas certezas”: “a grande luta que a sociedade de forma coletiva precisa travar é antirracista e o aprofundamento do desenvolvimento humano é fundamental em qualquer civilização”.  

Escravidão: o ‘trauma cultural’ e a viagem de retorno

Em 1986, João Jorge, 66, visitou pela primeira vez um país africano – o Benin. Embarcou como diretor da Fundação Gregório de Matos. Depois iria ao Senegal, Costa do Marfim, Ilha da União, Gana e Egito. Em cada um deles, investigava os rostos, reparava nos gestos, buscava preencher um vazio pessoal – “a herança da falta de identificação deixada aos negros brasileiros”.

Nessa ausência, reside o que o sociólogo Ron Eyerman chama de “trauma cultural”, capaz de provocar sofrimento psíquico em comunidades sobre as quais pairam eventos traumáticos como a escravidão.

Três anos depois, João ainda se sente transformado por viagem a Gana (Foto: Paula Fróes/CORREIO)

O apagamento da memória coletiva é um dos motivos potenciais de aflição, aliviada em João apenas três décadas depois daquela ida ao Benim. Acompanhado do filho e da delegação do Olodum, do qual é presidente, viajou tendo em mãos um exame genético feito em 2013, no âmbito do Brasil: DNA África. Era descendente do povo Akan, de Gana. 

Em oito dias de viagem, visitou duas cidades. Não sentiu tristeza.

“Essa viagem, para mim, foi um retorno, um reencontro em que chorei, sorri, vibrei. Senti alegria por ter vencido a escravidão, o fato de eu estar vivo é uma vitória”, conta ele, que voltou ao Brasil tendo, no peito, uma nova sensação. Se pudesse traduzir, resumiria como “um cordão umbilical ligado de novo”.

A visita a Gana completou três anos em outubro. Por lá, o governo providencia um passaporte binacional para João, que seria reconhecido também como cidadão local, e aqui João guarda uma cópia do trono dourado e a cronologia do povo do qual descende. Mas há ainda uma falta: o sobrenome africano sequestrado e transformado em Rodrigues pelos portugueses.

Uma das irmãs de João, Rita, já tinha resgatados alguns pedaços destroçados da família. Guiada pela memória oral, ela quem descobriu o desembarque da bisavó, adolescente, no Brasil. Em 2006, Rita faleceu, antes de ver a expansão das suas descobertas.

João e o filho, em Gana (Foto: Acervo Pessoa/João Jorge)

A ida ou retorno de afro-brasileiros e africanos para as regiões de onde partiam navios negreiros aparece, na literatura ocidental, desde os anos 50. Em “Fluxo e Refluxo”, apresentada como tese de doutorado em 1966 por Pierre Verger na Universidade de Sorbonne, já há menção à “comunidade dos retornados”.

Os “retornados”, mencionados ainda em futuras pesquisas, tinham diferentes perfis: eram, em geral, deportados depois da Revolta dos Malês, em 1835, regressos pós-abolição do tráfico negreiro e aqueles que compravam a alforria. Em África, passavam a ser reconhecidos como “agudás”. 

“Depois, você ainda tem fluxos variados, como quem volta para ficar pouco tempo no continente africano, para absorver conhecimentos, como líderes do Candomblé em busca de conhecimentos rituais a aplicarem aqui”, adiciona o historiador Carlos Silva, professor de História das universidades Estadual de Feira de Santana e Federal da Bahia.

Os anos 2000 renovaram, conta ele, o interesse pelo tema: possibilidades de pesquisa mais modernas surgiram, com chances de cruzamento de dados online e histórias orais. Como costuma acontecer, o movimento acadêmico refletia também a vida aqui fora: os retornados, então, eram brasileiros ávidos em se reconhecer no continente africano. 

Destino: Continente ‘África’

Em 2015, Carina Santos passou três meses entre sete países europeus, onde se incomodou pela “falta de pessoas pretas viajando”. Três anos depois, por um “anseio de reconexão”, viajou à África do Sul. Na volta, agrupou as experiências nos dois continentes e propôs, a partir do turismo, reconexões históricas com territórios negros.

À época, a turismóloga coordenava o projeto Black Travelist, criado em 2016, e o Destino Afro, de 2019, reestruturados neste ano como a Afrotrip, sediada em Salvador. O propósito é levar pessoas a Moçambique, África do Sul e Egito e trazer africanos ao Brasil.

As únicas opções de rota entre Brasil e África partem de São Paulo a Addis Abeba, capital da Etiópia, ou Luanda, capital de Angola. Ida e volta custam até R$ 8 mil. O único trecho que partia de Salvador para Cabo Verde foi interrompido durante a pandemia da covid-19. Os voos diários para Portugal permaneceram.

“Partimos de um anseio de ir para o continente africano no sentido do pertencimento. De um modo geral, entendemos nossa origem, como pessoas pretas, a partir de África. Eu não fiz exame de DNA, me sinto pertencente aos 54 países do continente”.

O reflexo da busca pelas próprias origens africanas ainda é visto timidamente nas agências de viagem. De cinco delas ouvidas pela reportagem, três disseram que a maior busca ainda é a de curiosos por conhecerem savanas da Tanzânia, e duas perceberam aumento de interessados em pacotes que os conectem com suas ancestralidades.

Keity em Moçambique (Foto: Acervo pessoal/Keity Souza)

Em abril deste ano, Keity Souza, 35, desembarcou em Salvador vinda de um mês em Moçambique, inserida no tráfico de escravizados para o Brasil no século 18. Viajou a trabalho e retornou com pedaços de Mpingo, tipo de madeira preta, imãs, tecidos coloridos e uma sensação de pertencimento nunca sentida.

“Voltei com algo que acalmou meu coração: ver Moçambique, uma imagem de África, como ela era, sem ver só pobreza”.

A cada dia que passava por Maputo, via nos bairros a imagem de Salvador. “Foi uma grande sensação de se localizar no mundo”, continua. 

Keity não partiu com um exame de DNA em mãos, nem quis conhecer pontos antes utilizados para o tráfico de pessoas. “É doloroso”, ela diz, “estar em um lugar em que pessoas da minha origem foram sequestradas”. Entre a família, a única lembrança da trajetória entre África e Brasil é a existência da tataravó, trazida à força para o Brasil.

A ideia dela é criar sua própria história com o continente africano, uma narrativa de reconstrução e descobertas. Este será o legado dela para os sobrinhos: a nova memória de uma geração que pretende refundar o sentido de autorreconhecimento. Em dezembro de 2023, ela parte para o Egito, na companhia de 19 pessoas – seis delas, mulheres negras e baianas.

Crédito: Correio

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