Opinião | J.R. Guzzo | Jovem Pan
A obsessão de legislar sobre a Covid-19 e sobre todos os seus aspectos, uma espécie de ideia fixa cada vez mais próxima do estágio clínico, está levando o Brasil (vamos deixar de fora o resto do mundo; o Brasil já chega) a descer de olhos fechados em direção à uma tirania meia-boca, medíocre e ignorante, envenenada pela superstição com o carimbo de ciência e comandada por uma multidão miúda de pequenos governadores, pequenos prefeitos e pequenos mandarins com estabilidade perpétua no emprego, aposentadoria com salário integral e nenhum risco de pagar pelos desastres que provocam. A Covid-19, atiçada pelo pânico sem precedentes que provocou desde o seu início, entregou a essa gente toda um poder que nunca imaginaram ter, nem os eleitos, nem os burocratas, inclusive a ventura de fazer compras sem licitação — e agora eles não querem mais largar o osso. Contam, para cumprir suas decisões ilegais e seus chiliques de despotismo subdesenvolvido, com a cumplicidade amedrontada da Justiça — sobretudo desembargadores e ministros dos tribunais superiores e do STF, que disputam entre si para ver quem obedece mais rápido às neuroses legalóides dos políticos. Aceitam tudo, validam tudo e, até agora, ao longo de dez meses inteiros de epidemia, não foram capazes de frear uma única ordem anticonstitucional baixada em nome da “preservação da vida”.
Da mesma forma, o Ministério Público, que entra em transe a cada vez que imagina ter diante de si a mínima contestação aos direitos de quilombolas, mendigos ou viciados em crack, não deu um pio, até agora, diante de violações flagrantes dos direitos individuais e das liberdades públicas cometidas para “combater a Covid” e “seguir as recomendações da ciência”. Governadores e prefeitos estabelecem a Lei Seca, violam o direito de ir e vir, obrigam os cidadãos a fazer coisas não previstas em nenhuma lei e envolvem-se o tempo todo em episódios de corrupção — e o MP, quando não abaixa a cabeça ou apoia esses disparates, faz de conta que isso tudo está acontecendo no Congo Belga, e não no Brasil. A maioria dos integrantes do Poder Legislativo engole com casca e tudo a ação dessa tirania de quintal — ou, então, se amontoam uns sobre os outros para embarcar no mesmo bonde, com projetos sem nexo algum e palavrório de apoio maciço aos atos mais agressivos de desrespeito às leis e à Constituição. As classes intelectuais, os que estão recebendo salário sem ir ao trabalho e as fatias superiores da sociedade engrossam essa sopa. Para completar, os veículos de comunicação agem como se fossem editados por uma cabeça só. Dedicam-se à defesa da “quarentena” como quem cumpre uma obrigação religiosa — publicam ou deixam de publicar informações e pontos de vista não em obediência a critérios jornalísticos, mas baseados na fé, ou, então, como militantes de um centro acadêmico. É uma espécie de morte cerebral.
Para se ter uma ideia, a imprensa passou a admirar qualquer decisão do governador João Doria, que até dez meses atrás era tido como um demônio só comparável ao presidente Jair Bolsonaro — chegou, até mesmo, a mostrar “compreensão” com o governador Wilson Witzel, escorraçado do palácio de governo do Rio de Janeiro sob acusações de roubalheira extrema. Mudou o sinal por um motivo só: Doria e Witzel passaram a ser aceitos como campeões nacionais da repressão em favor do “distanciamento social”. Na verdade, qualquer político esperto percebeu em dois tempos que o melhor jeito de se dar bem com a mídia, hoje em dia, é dizer que está de olho no vírus, botar uma máscara e sair por aí.
Todos os mencionados acima contam, enfim, com o apoio mais decisivo de todos: a passividade praticamente absoluta da maioria da população diante do furto de seus direitos. Aceita-se o “distanciamento social”, os acessos de tirania marca barbante e a safadeza das “autoridades locais” como um muçulmano aceita o Alcorão — parece que estamos diante de uma espécie de “queda no sistema”, em que as pessoas abriram mão da capacidade de pensar e passaram a ouvir apenas os ruídos produzidos dentro de suas próprias cabeças. É uma paralisação de anestesia geral, em que as vítimas se acreditam protegidas pelos reizinhos de esquina que lhes batem a carteira; estão vendendo sua liberdade a preço de banana, prontos a engolir qualquer coisa que venha da “autoridade” e dos seus médicos de rebanho.
Um dos efeitos mais perversos dessa trapaça em escala mundial tem sido a desordem que contaminou a palavra “ciência” — hoje uma das mais baratas de todo o vocabulário, pois qualquer um passou a encher a boca com ela a cada vez que pretende tirar proveito das oportunidades trazidas pela epidemia. “Estou a favor da ciência”, dizem autoridades, médicos e pesquisadores que pensam exatamente o oposto em torno de qualquer coisa relativa à Covid-19, da estrutura molecular do vírus ao uso da cloroquina. A ciência deixou de ser o universo dos fatos e passou a ser uma questão de opinião — e, a partir daí, ficou liberada para o primeiro passante a utilização da palavra “ciência” na defesa de suas crenças ou de suas agendas pessoais. Quando um médico diz que o vírus não pode fisicamente se transmitir a um toque no botão do elevador, por exemplo, e outro médico, no consultório ao lado, diz o contrário, ambos autorizam o paciente leigo a ter, ele, também a sua própria opinião. Por que não? Se os médicos deram para dizer “eu acho”, e passaram a ouvir lições de infectologia dadas por repórteres de televisão portando máscaras design — bem, aí não dá para reclamar que o Zé Mané também diga o que acha sobre a Covid, a mutação de átomos ou a eficácia relativa das vacinas da Pfizer, de Oxford ou a chinesa “do Doria”. Os políticos e ministros do STF, do seu lado, ganham direito a legislar sobre ciência, os eclipses solares e a área do triângulo. É para onde a Covid-19, sob aplausos gerais, acabou nos trazendo.