Quando o presidente da Rússia, Vladimir Putin, fechou as torneiras de gás para a Europa, a Alemanha temeu um inverno atormentado por apagões mais do que qualquer outro país.
Mas as autoridades alemãs foram rápidas em garantir suprimentos alternativos, cientes de que a forte dependência do gás russo havia deixado o motor econômico da Europa consideravelmente exposto.
Hoje, poucos meses depois, as luzes brilham nos mercados de Natal e nota-se um tímido otimismo em meio ao ar temperado com Glühwein (vinho quente).
A estratégia que a Alemanha montou às pressas para sobreviver sem o gás russo parece estar funcionando, pelo menos por enquanto.
“A segurança energética para este inverno está garantida”, disse o chanceler social-democrata Olaf Scholz no Parlamento alemão na quarta-feira (23/11).
As jazidas de gás do país são preenchidas, em parte, por uma frenética — e cara — operação de compra nos mercados mundiais de hidrocarbonetos.
Da mesma forma, na costa varrida pelo vento do Mar do Norte da Alemanha, engenheiros acabam de construir, em tempo recorde, seu primeiro terminal de importação de gás natural liquefeito (GNL).
O GNL é o gás natural resfriado na forma líquida para reduzir seu volume e facilitar seu transporte. E volta a se tornar gás ao chegar a seu destino.
Na Alemanha, esse tipo de projeto costuma levar anos, devido à excessiva burocracia. No entanto, as autoridades eliminaram entraves para que a obra fosse concluída em menos de 200 dias.
A parte mais importante do terminal, uma “unidade flutuante de armazenamento e regaseificação” (FSRU), ainda não foi garantida. O FSRU, que é essencialmente um navio especializado no qual o GNL é convertido de volta ao estado gasoso, será alugado por US$ 207.259 (R$ 1,1 milhão) por dia.
Dentro de algumas semanas, petroleiros de países como Estados Unidos, Noruega ou Emirados Árabes Unidos poderão começar a entregar suas cargas no porto de Wilhelmshaven.
A operadora do terminal, a Uniper, que agora é controlada quase inteiramente pelo governo alemão, se recusou a divulgar seus fornecedores, mas reforçou que os contratos já estão em vigor.
Berlim planeja construir outros 5 terminais de GNL. A maioria deve ser concluída no ano que vem.
A poderosa indústria alemã prendeu a respiração enquanto o governo executava sua arriscada estratégia.
“Se não temos gás, temos que fechar o forno”, diz Ernst Buchow, dono de uma olaria a meia hora de Wilhelmshaven, à BBC.
Os tijolos que produz devem ser queimados em um forno gigante a temperaturas de até 1.200 graus Celsius. Num futuro próximo, o empresário espera poder mudar para o hidrogênio verde, mas neste momento ainda está totalmente dependente do gás.
“Não é apenas culpa dos políticos. A indústria queria os contratos de gás russos “, acrescenta.
Há apenas um ano, os acordos com Moscou forneciam à Alemanha 60% do gás consumido, grande parte por meio do gasoduto Nordstream.
Apesar da significativa oposição política e cidadã, o governo esperava colocar em operação o controverso Nordstream 2, que teria dobrado a quantidade de gás russo que chegava à Europa via Alemanha. No entanto, a invasão da Ucrânia enterrou esses desejos.
A agência federal de rede de energia diz que hoje a Alemanha administra sem combustível russo.
Mas, para evitar desabastecimento durante o inverno, seus especialistas dizem que os terminais de GNL devem entrar em operação no início do próximo ano e que o consumo de gás deve ser reduzido em 20%.
Chegar até aqui pode ser considerado uma grande conquista nacional, mas não veio de graça.
A Alemanha, um peso pesado da economia mundial, muitas vezes consegue o que quer. Mas seu novo apetite por GNL está intensificando a demanda global.
E isso pode colocar países mais pobres como Bangladesh e Paquistão em uma posição vulnerável.
“Existem muitos países, especialmente economias emergentes, que estão fora do mercado e não podem mais se abastecer com o GNL de que precisam, porque têm menos poder aquisitivo do que a Alemanha”, diz o professor Andreas Goldthau, da Escola Willy Brandt de Relações Públicas na Universidade de Erfurt, na Alemanha.
Goldthau alerta que isso coloca essas nações em maior risco de sofrer apagões ou ter que recorrer a energias “mais sujas”, como o carvão, justamente para evitar esse cenário.
E os planos da Alemanha para completar sua transição para um modelo verde? Afinal, o GNL é um combustível fóssil.
Todos os envolvidos no projeto Wilhelmshaven insistem que o GNL é um combustível de “transição”.
A Uniper prometeu construir uma infraestrutura para lidar com hidrogênio verde junto com o terminal de GNL.
Isso alimentou os planos ambiciosos do conselho municipal de Wilhelmshaven. O prefeito, Carsten Feist, garantiu que o terminal de GNL não trará muitos empregos para a cidade. Mas isso vai acontecer com seus planos de criar um centro de energia verde.
“Grande parte da transformação energética de que precisamos para que nosso planeta tenha um clima habitável em 50 a 100 anos, muito do que é necessário na Alemanha, ocorrerá em e através de Wilhelmshaven”, diz ele.
Mas o custo mais impressionante da estratégia de Berlim para cortar sua dependência do gás russo é monetário.
Os seis terminais de GNL obrigaram o governo alemão a gastar cerca de US$ 6,3 bilhões. Isso é mais que o dobro do que os ministros haviam inicialmente orçado e pode aumentar ainda mais no próximo ano.
A Alemanha aprendeu tarde demais o valor de um abastecimento seguro de energia e agora está pagando caro por isso.
– Este texto foi publicado em https://www.bbc.com/portuguese/internacional-63769249
Informações BBC News