Por Pedro Henrique Alves para Revista Oeste
‘A liberdade de matar alguém em troca de uma suposta ‘liberdade’ social e pessoal utilitária me parece um dos argumentos mais bizarros já formulados na modernidade’, afirma o colunista Pedro Henrique Alves
Debater que o aborto não é eticamente lícito sempre foi um daqueles temas que afastam as pessoas numa roda de conversa, seja por medo, remorso ou desinteresse puro e simples. Sabe aquele papo que, quando iniciado, faz as pessoas se levantarem da mesa, o famoso “espalha roda”, pois é… Eu sou um desses que, apesar de um convicto defensor da vida desde a concepção, não gostava muito de debater a temática ao ar livre até pouco tempo atrás. Porém, assim como Nelson Rodrigues, nesse assunto, eu me assumo como um “ex-covarde”. Deixe-me, então, falar sobre o que muitos não gostam de falar… E não, isso não é minha culpa, é culpa do Supremo Tribunal Federal (STF) e da Câmara dos Deputados.
Antes de mais nada, faço memória aqui a alguns corajosos que tocaram nessa mácula ética do Ocidente moderno, principalmente para não passar a imagem presunçosa de que sou a voz solitária que clama no deserto. Francisco Razzo e seu competente livro Contra o Aborto, Bernard Nathanson — um dos maiores médicos abortistas do EUA que se tornou ferrenho crítico do aborto — e seu ótimo A mão de Deus: O Ex-Rei do Aborto Fala da Própria Vida, e o menosprezado livro, mas um dos melhores para os libertários abortistas, O Argumento contra o Aborto, do igualmente libertário senador norte-americano, Ron Paul, são algumas obras sobre o assunto que destaco e indico. Não posso deixar de citar outro livro, esse de cunho historiográfico extremamente bem feito, o História do Aborto, da historiadora italiana Giulia Galeotti.
Pois bem, mas como estava dizendo, depois de muito fugir do tema — como é praxe em minha vida —, mergulhei de cabeça em debates com os defensores do aborto depois de ser provocado uma ou duas vezes apenas. Destaco que também li alguns livros de defensores da pauta para me situar da profundidade argumentativa dos defensores, cito dois como exemplo:
No primeiro, encontramos argumentos filosóficos e jurídicos tentando convencer-nos de que a liberdade de abortar e a de praticar a eutanásia inevitavelmente serão um avanço para qualquer democracia futura e estão atrelados ao princípio de liberdade individual ocidental. No segundo, a pesquisadora afirma que os argumentos cristãos de que a extrema maioria das mulheres que abortaram sofre social e psicologicamente depois de praticarem o aborto, não passa de mentira estatística, que a maioria das mulheres pesquisadas por ela se encontram felizes e em melhor estágio social e psicológico após abortarem.
Todavia, acredito que, antes das divagações sobre um mundo domado pelo mercadão de mortes de não nascidos e dos que desistiram de viver, além da satisfação social das que praticam o aborto numa manhã tranquila de primavera, devemos olhar para a questão sob uma análise da coisa em si mesma — eis minha veia filosófica pulsando aqui. O que é o aborto, afinal?
Para responder a isso, devemos focar, por primazia, no núcleo dos argumentos de ambos os lados, num canto temos os “pró-vida”, que defendem que a dignidade da vida, desde a concepção, é válida tal como a de qualquer outra pessoa da sociedade, do rei ao plebeu. Noutro corner, temos os “pró-aborto”, que defendem que a grávida tem o direito de escolher se deve ou não levar a gestação adiante, independentemente do que seja o aglomerado de células em seu útero.
O que escurece o debate, na minha visão, são duas coisas:
Enquanto que o aborto, no final das contas, é uma questão mais pragmática e eticamente fácil se nos detivermos ao ponto-chave da discussão: devemos ou não permitir a interrupção de uma vida no ventre materno pelo simples fato de escolha da mãe?
Debates sobre “onde a vida começa”, ou se, em casos onde a gravidez se revela mortal à mãe, ela deve ou não ter o direito de abortar, parecem-me cíclicos e feitos para afastar a questão central do debate. Sendo a origem da vida amplamente defendida desde a concepção pelos principais e mais neutros embriologistas, logicamente a vida humana não é um pedaço corpóreo, ou um funcionamento elétrico cerebral apenas, é um conjunto biológico que tem seu único start possível na concepção.
“A liberdade de matar alguém em troca de uma suposta ‘liberdade’ social e pessoal utilitária me parece um dos argumentos mais bizarros já formulados na modernidade”Pedro Henrique Alves
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Em muitos debates dos quais participei, os “pró-aborto” eram completamente sinceros nesse aspecto, aceitando de bom tom que tentativas de definir num momento temporal, ou de desenvolvimento fetal, onde está a vida, são argumentos fantásticos e pouco científicos. No caso de risco à mãe, por sua via, parece-me que a escolha ética recai, aí sim, sobre a mãe e seus conselheiros médicos, psicológicos e familiares, a escolha ética aqui não se dá no mero “querer”, mas numa questão de vida ou morte onde uma escolha deve ser feita para que uma das vidas seja salva, mas, reparem, aceita-se que são essencialmente vidas.
No que tange ao tom geral do debate, e com “geral” quero dizer explicitamente “político”, o tema gira em torno da liberdade individual da mulher sobre o seu corpo. É aí que a desfaçatez e as distorções retóricas entram no baile. Primeiro de tudo, o feto não é a mãe, a mãe não é o feto. O ser em seu útero é dependente da mãe, mas é também um ser diferente da mãe. Há uma dependência de nutrição e cuidado, mas, de muitas maneiras, aquele feto é autônomo e digno de ser considerado já um ser humano como qualquer outro.
Segundamente, a liberdade de matar alguém em troca de uma suposta “liberdade” social e pessoal utilitária me parece um dos argumentos mais bizarros já formulados na modernidade. Ora, partindo da verdade de que um feto é vida, autorizar alguém a matá-lo, só porque essa pessoa não quer a responsabilidade, peso ou preocupação de ser mãe ou pai, soa-me tão ancestral, bárbaro, quanto inacreditável nos dias atuais. Pior ainda é dizer fazê-lo em nome da “liberdade feminina”.
“Se, no final das contas, o feto gerado não tem de culpa nisso [estupro], por que deveria ser ele o penalizado com a pena de morte?”Pedro Henrique Alves
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A não ser que queiramos cair na esteira eugenista de definir quais vidas valem mais, e com isso dar a mão a Hitler e a outros seres abjetos da história humana, expressar uma defesa do aborto ancorada no simples ego matutino de uma mãe ou um pai — que, não raro, força a mulher a isso, e tem igual, se não pior, peso sobre o ato abortivo — parece-me um dos pontos mais vergonhosos da contemporaneidade. E, aqui, não vamos virar o rosto ao “elefante na sala de estar”. A saber, os casos de estupro.
Talvez esteja aí a situação mais nauseante que possamos imaginar nesse debate. Por isso mesmo, acredito que devamos pesar tudo com racionalidade e responsabilidade, e não somente com a emoção, pois, no final, assim como o ato do estupro em si, não parece justo que o fruto inconsciente do abuso ganhe a pena de morte sob aplausos políticos, enquanto o estuprador, se pego, passará uns seis anos detido e voltará para a sociedade com bolsas do governo e afagos de ONGs.
Não estou pupurinando a situação de uma gravidez fruto de violência, estou ponderando que, se, no final das contas, o feto gerado não tem de culpa nisso, por que deveria ser ele o penalizado com a pena de morte? Há aqui não só a morte do feto, mas a morte do direito e da própria lógica da ética.
O debate sobre o aborto é muito mais simples do que imaginamos, ele é sobre o direito legal de matar bebês no útero de suas mães. E apesar do quão duro pareça ser colocar o assunto nesses termos, o aborto é isso sem as maquiagens e as retóricas engajadas da esquerda.
“Abortar significa matar o mais inocente e indefeso dos seres de nossa espécie, o resto é penduricalho jurídico e filosófico, glitterretórico”Pedro Henrique Alves
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Por onde debati o tema, nunca um argumento “pró-aborto” pareceu ter pendido mais a balança do bom senso popular quando o colocamos às claras. Assim como num exorcismo o padre deve fazer o demônio dizer seu nome para que ele seja exorcizado, para bem entendermos a natureza do aborto, devemos dizer o que ele é em sua forma cruenta, factual. Abortar significa matar o mais inocente e indefeso dos seres de nossa espécie, o resto é penduricalho jurídico e filosófico, glitterretórico.
Por fim, eu sinceramente me questiono sobre como seria a sociedade em que as pessoas abertamente defendessem o aborto num nível consciente de tudo que disse acima. Digo socialmente mesmo, pois há nisso uma incoerência invencível em termos de ética social. Afinal, não há como convencer racionalmente alguém sobre a sacralidade da vida de um mendigo, de um órfão, de uma escrava sexual, ou de um detento preso por latrocínio, se, como pressuposto social, já aceitarmos — sob os mais vagabundos argumentos — que está tudo bem matar um bebê no útero de sua mãe.
Você confiaria em alguém que dissesse ser correto matar bebês nos úteros de suas mães?… Então por que deveríamos concordar e aceitar de bom grado quando o Estado, ou o STF, diz a mesma coisa?
A dignidade da vida humana é o pilar primevo de qualquer sociedade minimamente ordeira e livre, e se maculamos isso, no fim, só sobrará retalhos e escombros. Escombros de uma sociedade eticamente falida, retalhos de seres humanos moralmente apodrecidos.
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