A guerra na Ucrânia, que se arrasta há mais de dois meses, deve estabelecer novas fronteiras no território do país invadido, apontam analistas especializados em Relações Internacionais ouvidos pelo UOL.
Segundo eles, os russos podem tomar definitivamente territórios mais industrializados e com acesso ao mar de Azov, nas regiões sul, leste e sudeste. Em paralelo a isso, negociam um afastamento da Ucrânia da Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte).
O geógrafo e cientista político Tito Barcellos Pereira projeta uma possível divisão gerando o que seria uma “Ucrânia Ocidental”, capaz de manter a sua soberania. Porém, afastada de países europeus, subordinada aos russos e enfraquecida economicamente pela perda territorial de regiões mais industrializadas.
Os municípios do sul, leste e sudeste, na área oriental, formariam a “Nova Rússia”, incluindo os territórios separatistas. Em meio aos conflitos, o Kremlin já afirmou que a Ucrânia deve reconhecer a península da Crimeia como parte da Rússia e a independência das autoproclamadas repúblicas de Lugansk e Donetsk para que as negociações de cessar-fogo possam avançar.Imagem: Arte UOL
“Há um adensamento populacional muito maior no leste e no sul, porque são áreas industrializadas em regiões portuárias. Caso os russos tomem todo esse território, a Ucrânia seria reduzida a Kiev e Lviv”, avalia o cientista político.
Segundo ele, as outras cidades que ainda seguiriam sob o domínio ucraniano são de pequeno porte e essencialmente agrícolas. “É uma região pouco povoada. Nenhuma dessas cidades tem mais de 300 mil habitantes. Restaria para a Ucrânia Kiev e um oeste agrário pouco urbanizado e pobre”, explica.
Seria como se o Brasil fosse invadido e perdesse o sudeste, sul e nordeste, onde está o litoral e as maiores cidades, como São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte. Nesse caso, sobrariam apenas regiões agrárias e dependentes de Brasília. Aí, eu pergunto: quem teria condições de se desenvolver economicamente nessas condições?
Tito Barcellos Pereira, cientista político e geógrafo
Tito ainda traça outros dois cenários para o desfecho do conflito. O mais pessimista para os ucranianos seria a mudança de regime, forçando o país a se tornar parceiro econômico e aliado militar dos russos. No cenário mais otimista, a Ucrânia entraria para a Otan e perderia “apenas” Donetsk, Lugansk e a península da Crimeia, já sob o domínio russo.
“Mas, considerando que russos ocupam parte considerável do território ucraniano, me parece que a guerra será mais longa, podendo se estender por até mais de um ano”, diz.
O cientista político também diz ver o que entende ser uma ação mais focada das tropas russas no último mês, fortalecida após o general russo Alexander Dvornikov, conhecido como o “Açougueiro da Síria”, ter sido nomeado como novo comandante das operações de guerra no território invadido.
“Há uma coordenação de todas as operações, com foco na tomada dos territórios de Donestk e Lugansk”, analisa.
Segundo ele, há concentração de ações com intensos bombardeios sobretudo em Mariupol, com acesso ao Mar de Azov, o que a torna estratégica para os russos, permitindo a ligação entre a Crimeia e as áreas separatistas. “É uma cidade portuária e industrializada, apesar de pequena, que pertence à província de Donetsk”, explica.
Nesta semana, o presidente ucraniano Volodymyr Zelensky fez um apelo à ONU (Organização das Nações Unidas) para “salvar” feridos abrigados em uma siderúrgica na cidade em meio aos ataques —anteriormente, o órgão havia anunciado a retirada de civis entrincheirados no complexo industrial em um cessar-fogo na usina sob ataques no último reduto de resistência na cidade portuária.
Professor de Relações Internacionais e Mestre em Estudos Estratégicos pela Universidade de Reading, na Inglaterra, Renato do Prado Kloss, projeta um cenário provável e “catastrófico” para a Ucrânia em caso de perda da região de Donbass, no leste do país, e das áreas portuárias.
“Com minas de carvão e indústrias de metalurgia e aço, a área do Donbass é a área mais industrializada do país. A perda dessa região representaria um impacto tremendo na economia da Ucrânia”, analisa.
Para o professor Sandro Teixeira Moita, doutor em ciências militares, Donbass é um ponto crucial para os ucranianos.
“Donbass é uma região importante porque controla a saída para o mar e possui usinas que usam água do rio para resfriamento. A luta desesperada da Ucrânia talvez seja não permitir a perda dessa região para os russos. A leitura também dos países europeus é de que isso pode passar uma mensagem de fraqueza. Se aceitarem discutir Donbass, o que impede os russos de avançar em outras direções?”, questiona.
O professor Renato Kloss diz entender, contudo, que a conquista territorial momentânea das tropas russas não necessariamente será definitiva.
Os russos não vão largar essa ofensiva agora. E vão tentar conquistar o maior número de cidades também como forma de barganha até para negociar um afastamento entre Ucrânia e Otan”
Renato do Prado Kloss, professor de Relações Internacionais
Contudo, reconhece que o cenário pode se agravar caso os russos também conquistem Kherson e Odessa, na mira dos ataques. Um vídeo mostrou a explosão nas imediações da torre de TV de Kherson, no dia 2 de abril. A região portuária de Odessa, inclusive, está desativada devido ao bloqueio naval russo no conflito.
“É a pior das hipóteses para os ucranianos. O porto de Odessa seria o único ponto para escoar os produtos. Sem isso, a Ucrânia precisaria usar um porto na Bulgária, aumentando muito os seus custos com o pagamento de frete das exportações”, diz Kloss.
O professor Sandro Teixeira Moita explica que ultranacionalistas russos projetam a criação de uma “Nova Rússia” em território ucraniano, retirando o acesso do país invadido ao Mar Negro. “Esse seria o objetivo para forçar os ucranianos a assinar um acordo de paz nos termos russos. Sem essas cidades industrializadas, a Ucrânia sofreria um baque econômico muito grande”.
Informações UOL