Emoções reprimidas levam o espírito para o buraco negro em que nada consegue florescer, só o desespero, fortalecido pela mágoa e irrigado pelo ódio e suas incontáveis vertentes. O ser humano não suporta ficar indisposto, refém das descompensações químicas que ele mesmo fomenta. Qual a solução, rápida, por que não há tempo a se desperdiçar? Antidepressivos, ansiolíticos, sedativos… e o ciclo recomeça, cada vez mais longo, mais tomado de venenos para se combater o mal que entranha no inconsciente e vai achando as gretas por onde se esquiva e se perpetua. Às vezes, a sensação de nó na garganta só se dissipa com a ajuda da medicina, mas na maior parte dos casos, há muitas outras saídas antes de se entregar aos tarjas-pretas que se assenhoram da vida do homem contemporâneo. Há momentos em que uma conversa, franca, direta, objetiva e, o principal, desarmada colocaria termo às diversas questões que nos atormentam desde um tempo em que a indústria farmacêutica tratava os males universais do gênero humano à base de tônicos, elixires e unguentos que lembravam as poções mágicas dos contos infantis.
Como a maioria dos cineastas turcos, Özcan Alper exalta o jeito de seu povo lidar com os escombros que sufocam a alma. “O Festival dos Trovadores” (2022) é o que o nome sugere: o encontro — quiçá desastroso, mais afeto ao choque — de pai e filho que poderiam ter se amado algum dia, mas atropelados pela vida e pela vontade de um deles, só conseguem alimentar seus rancores de outras vidas. Alper trabalha seu roteiro, coescrito com Kemal Varol, o autor do romance de mesmo nome em que seu o filme é inspirado, atento a materializar nos pouco mais de cem minutos do longa as belas metáforas visuais construídas pelo texto de Varol, considerado um dos grandes escritores contemporâneos da Turquia, um legítimo trovador, como no título escolhido para vender a história. Outras figuras de linguagem e períodos descritivos ora secos, ora caudalosos também se replicam da obra publicada para a transformada em cinema, mas o que impressiona mesmo é a capacidade do diretor quanto a conservar a essência do par de personagens centrais, pai e filho perdidos num turbilhão de lembranças.
O advogado criminalista Yusuf é um workaholic confesso, sem nenhuma culpa disso — até porque foi esse empenho que fez dele o profissional de sucesso que se tornou, digno de morar num bom apartamento e desfrutar de todo o aconchego que o dinheiro pode comprar. Numa das tantas noites solitárias em que priva de sua própria companhia, o personagem vivido por Kıvanç Tatlıtuğ recebe a visita que teria mudado sua vida muito tempo atrás: Ali, o pai com quem não trava contato há 25 anos, reaparece sem prévio aviso depois de um passeio nada agradável para a maioria das pessoas, mas que ele consegue transformar num acontecimento, graças ao talento invulgar para a música. O trovador da história, interpretado por Settar Tanrıöğen, precisa de um lugar onde atravessar a noite até que amanheça e ele possa seguir para Arkanya, no extremo leste do território turco, quase fronteira com a Armênia. De lá, parte para mais longe ainda: acontece em Kars o tal convescote em que poetas e tocadores de baglama se reúnem no intuito de se desafiarem uns aos outros, até que o mais hábil com as palavras sagre-se o vencedor da contenda.
O jeito desmazelado com que Ali trata a própria saúde inspira a desconfiança de Yusuf, que chega a flagrar o rompimento de uma sonda e o consequente extravasamento do sangue. Amigo de homens influentes, o advogado pede que um amigo médico esqueça a ética e pesquise o prontuário do pai, a fim de saber o que ele tem. Suas suspeitas quanto a uma doença graça se confirmam e Yusuf se oferece para conduzi-lo até o festival. Esse é o gancho usado por Alper para sugerir o acerto de contas de pai e filho atrasado um quarto de século; enquanto isso, o enredo, eminentemente linear, mostra os conflitos, duros, entre os dois, feitos de impropérios que ferem e silêncios mais ríspidos ainda, até que sobrevenha o desfecho, previsível, mas comovente assim mesmo.
Filme: O Festival dos Trovadores
Direção: Özcan Alper
Ano: 2022
Gênero: Drama/Road movie
Nota: 8/10
Informações Revista Bula