Algumas pessoas são obrigadas a entender, desde muito cedo, que a vida não lhes reserva a genuína essência das coisas, mas só um caldo ralo e frio, temperado pela eterna ira que pontua a existência de todos nós em maior ou menor intensidade. Para esses indivíduos, afetos têm a natureza de algo que se quebrara há bastante tempo, mas que resiste, apoiando-se na areia colorida da farsa, que vai tragando e perdendo tudo. Socorrem-nos colossos que o homem de quando em quando inventa, a exemplo da filosofia, o pensamento organizado em torno das angústias que o gênero humano sempre há de sentir, passem-se dez, vinte, cem, mil anos, mas somos a um só tempo tão desgraçados e misteriosos que, mesmo todo o poder imensurável do conhecimento filosófico não é capaz de nos atender sempre. Sucedem-se eventos na vida do ser humano que nem toda a sabedoria reunida em todas as páginas dos livros de todos os filósofos do mundo teria o condão de abarcar. Em casos assim, enterrar o passado, tomar um novo rumo e refazer a vida toda outra vez, do zero, é muito mais que um ato de coragem: é uma profissão de fé na própria vida.
As grandes (e necessárias) mudanças na jornada de cada homem só começam depois de alguma hesitação, e não há nada de errado nisso, uma vez que muitos levam toda uma vida procurando a tal zona de conforto de que muitos falam. No entanto, a partir do momento em que se tem claro que se precisa mesmo girar o leme com toda a energia e levar o navio para outros mares, não existe força que possa se igualar à vontade de conquistar seu quinhão no mundo, preservando-se a si e a quem vier depois. A diretora Anna Foerster capta todas essas ideias numa só personagem, a mesma que dá nome a seu novo filme. “Lou” (2022) não tem a menor intenção de reinventar a roda, e justamente por ser tão direto em seus propósitos, alcança o que parece ser seu objetivo maior, o de encaminhar o público para uma conclusão inescapável — e algo maldita —, sem a facilidade do maniqueísmo ou o pedantismo da moral imposta. Mas até que chegue a ela, faz questão de tornar a experiência o mais caótica possível.
O cinema ainda não descobriu Allison Janney, pelo menos não o suficiente. A ganhadora do Oscar de Melhor Atriz Coadjuvante de 2018 por “Eu, Tonya” (2017), onde deu vida à mãe supostamente abusiva de uma estrela da patinação, encarna mais um desafio como o do filme de Craig Gillespie. Interpretar mães problemáticas, donas de um passado nada lisonjeiro parece estar se tornando a especialidade de Janney, uma grande especialidade. Em “Lou”, não é preciso ser nenhum gênio para se deduzir que o mistério fundamental do roteiro de Jack Stanley e Maggie Cohn gira em torno do papel da veterana, ou outro seria o nome do filme — e olhares mais treinados identificam sem muito esforço de que se constitui esse enigma, mas isso é uma outra história. Foerster vai dando ao espectador pistas até bastante óbvias de que é prudente desconfiar da personagem-título, uma mulher já entrada em anos, vivendo já três décadas num lugar ermo como a ilha das Orcas, no noroeste do Pacífico, fiel a uma solidão doída só quebrada pelo cãozinho Jax, “interpretado” pela dupla de vira-latas Ozzie e Jersey, e por idas esporádicas à cidade, onde esbarrões inadvertidos no xerife Rankin, de Matt Craven, rendem uma sessão de resmungos e falsas gentilezas de parte a parte. Sua misantropia também perde força — e nessa hora, sim, começa a ser essencial atentar para as entrelinhas do texto de Stanley e Cohn — quando é forçada a ir cobrar o aluguel de Hannah, a única vizinha em quilômetros, não exatamente por causa da personagem vivida por Jurnee Smollett, mas por sua filha Vee, uma garotinha tão adorável quanto esperta, de Ridley Asha Bateman.
O arco dramático da trama se fecha com a entrada em cena de Philip, um tipo sombrio que a cara de bom moço de Logan Marshall-Green disfarça convenientemente em enredos assim. O forasteiro traz consigo as inquietações de uma vida de milhões de perguntas que a diretora responde aos poucos, mas à queima roupa, desvendando os segredos que Lou guarda desde sempre. Assuntos como maternidade, ageísmo, feminismo e sororidade são coroados por um final simplesmente arrebatador em a personagem da magnífica Janney, uma Medeia torta, dispara num jato que nem todas as mulheres nascem para serem mães. Um tabu difícil de cair.
Filme: Lou
Direção: Anna Foerster
Ano: 2022
Gêneros: Ação/Crime/Drama
Nota: 8/10
Informações Revista Bula