Distúrbio faz que pessoas se interessem apenas por conquistar o outro, sem se engajar verdadeiramente em relacionamentos
“Outro dia um amigo meu me perguntou quantas mulheres eu tinha amado. Foram 234, fora as minhas professoras do curso primário”. A frase é do arquiteto Paulo, protagonista da série “Todas as Mulheres do Mundo”, que estreou no ano passado no serviço de streaming Globoplay e que atualmente está na grade de programação da Rede Globo. Inspirada e prestando homenagem à obra do dramaturgo Domingos de Oliveira, em cada um dos 12 episódios da produção, o personagem se relaciona com uma figura feminina, sendo que, em geral, as narrativas são sobre novos enlaces amorosos. Galanteador e um convicto apaixonado pelo próprio ato de se apaixonar, Paulo, interpretado pelo ator Emílio Dantas, não apenas seduz, como também se deixa seduzir. “Deus inventou o sexo e a paixão. O amor é um delírio para compensar a morte, e quem o inventou foram os homens”, diz a certa altura.
Diante do enredo, é tentador classificar o personagem dentro do arquétipo de “Don Juan”, como são chamados os personagens sedutores, em alusão à obra do espanhol Tirso de Molina, que registra esse traço de comportamento em um livro ainda no século XVII. Contudo, aos olhos da psicologia, Paulo é apenas evidência de como fatores socioculturais podem dificultar o diagnóstico preciso de uma síndrome que vem sendo investigada há anos e que tem como principal característica “a compulsão por seduzir outra pessoa em um jogo repetitivo e sem o propósito de uma construção de relação”, como explica o psiquiatra Rodrigo D’Angelis.
“Apesar de (na série) haver essa busca por novas relações, esse prazer pela paixão, que são características da síndrome de Don Juan, o personagem também se engaja na construção de relacionamentos, tanto que, em alguns, ele até cresce com aquela troca e, em outros, se frustra. Nisso, ele se difere de pessoas com o diagnóstico, pois, para elas, apenas o prazer pela conquista interessa, e o que vem depois perde o sentido”, observa.
Nesse sentido, D’Angelis adverte que é preciso cuidado para não se banalizar o termo. Ele situa que a sedução e o flerte, quando partem de uma pessoa com donjuanismo, possuem particularidades. No caso desses indivíduos, os mecanismos de conquista não estão associados a um desejo legítimo de troca e de construção com o outro, mas sim pela ânsia de suprir demandas relacionadas a traços de egocentrismo, à necessidade de autoafirmação, às alterações de autoestima e à compulsão. O psiquiatra lembra que a troca de parceiros e a infidelidade são comuns a esses sujeitos, “já que, ao seduzir e conquistar o amor do outro, perde-se o sentido da relação, assim como a motivação (para se manter nela). A partir disso, a necessidade de buscar aquele prazer novamente acomete o portador da síndrome”, expõe.
Em resumo: “O foco não é o outro mas o efeito psicológico compulsivo de troféu a partir da concretização da sedução”, assinala D’Angelis, acrescentando que, “em ações compulsivas e na busca de prazer, há fatores neuroquímicos envolvidos”. Outra característica dos portadores da síndrome é que estes, comumente, parecem mais motivados se a vítima oferece alguma dificuldade para a relação, como quando ela está em outro relacionamento ou se tem uma postura independente.
Tratamento. Na avaliação de Rodrigo D’Angelis, a psicoterapia é a melhor indicação de tratamento para essas pessoas. Mas, para que o processo seja efetivo, “é muito importante que o sujeito perceba o sofrimento causado por um prazer fugaz que não lhe promove construções saudáveis”. O apelo, portanto, está associado ao desejo de conter danos causados a si próprio, pois “não se pode contar com a possibilidade de motivação para a psicoterapia daquele com donjuanismo, a partir de uma preocupação com o sofrimento que ele promove nos outros”, avalia.
Origem. O mito de Don Juan baseia-se em três principais obras literárias: a peça El Burlador de Sevilla, de 1620, do espanhol Tirso de Molina; a peça Don Juan, de 1665, do dramaturgo francês Moliere; e a ópera Don Giovanni, de 1787, do compositor austríaco Mozart.
Mais frequente em homens, síndrome também acomete mulheres
“O Don Juan é visto como alguém com uma dependência patológica, semelhante ao alcoolismo”, indica a psicóloga social Heloísa Bárbara Cunha Moizéis em um dos artigos que compõem a sua dissertação de mestrado. No texto, apresentado à Universidade Federal da Paraíba (UFPB) em março do ano passado, ela expõe que o distúrbio é mais vezes associado a homens, mas que também pode ocorrer em mulheres, quando o desvio comportamental passa a ser chamado de síndrome de Afrodite. A estudiosa também informa que, segundo a literatura científica disponível até agora, o distúrbio está associado predominantemente a relações heterossexuais.
“O sedutor ama todas as mulheres e, portanto, não ama nenhuma mulher; ele seduz para destruir o poder da figura materna que projeta nas mulheres. Por isso, seu comportamento sedutor é uma verdadeira estratégia contraposta, que visa negar seus aspectos femininos”, escreve, completando que estudiosos também têm procurado demonstrar uma extensa tradição donjuanesca feminina, que é raramente estudada. “Assim, levando em consideração o que já foi exposto, essas mulheres são aquelas que rompem com o estereótipo do virtuoso feminino, indo contra os comportamentos a exemplo da pureza, castidade, fidelidade, pudor e inércia erótica”, anota a autora.
Heloísa observa que o único traço aparente que diferencia o donjuanismo feminino do masculino refere-se à estratégia manipuladora utilizada pela mulher para seduzir o outro. Nelas, a opção mais recorrente passa por uma conquista de forma mascarada. Já neles, em contrapartida, “o donjuanismo é praticado às claras e quase sempre é recebido positivamente no meio social, que considera esse comportamento uma prova de virilidade”, sinaliza.
Sofrimento. Embora a pessoa que tenha a síndrome possa não cometer crimes, “ela causa danos psicológicos sérios em suas vítimas, que costumam ficar traumatizadas a ponto de evitarem novos relacionamentos”, expõe Heloísa Bárbara Cunha Moizéis.
Transtornos associados. A estudiosa pontua que pessoas donjuanescas, tanto masculinas como femininas, apresentam atributos que podem estar associados a alguns tipos de transtornos de personalidade, como borderline, narcisismo e histriônico antissocial. Cabe ressaltar que a compulsão pela sedução não será necessariamente uma característica de pessoas com esses diagnósticos.
Classificação. Com relação à classificação dessa síndrome, o Manual de Diagnóstico e Estatística (DSM-V) e a Classificação Estatística Internacional de Doenças (CID-10) não oferecem denominações específicas para pacientes que possam apresentá-la.
Características marcantes
Recorrendo a estudos capitaneados pelo psicólogo e psiquiatra italiano Michele Novellino, a pesquisadora Heloísa Bárbara Cunha Moizéis aponta as principais características do distúrbio em um dos artigos apresentados na dissertação “Síndrome de Donjuanismo: Conceitos, Medidas e Correlatos”.
Compulsão à conquista sexual. A vida psíquica dos indivíduos com donjuanismo gira em torno da necessidade e satisfação em seduzir, algo que é experimentado como uma obsessão.
Obtenção do prêmio. Uma vez que a satisfação tenha sido alcançada, esse sujeito toma muito cuidado para evitar que o encontro sexual se transforme em um vínculo emocional. Não se deve deixar enganar pela aparência de relações “oficiais”, como o casamento, que serve como camuflagem social.
Problemas sexuais frequentes. Essas pessoas usam suas conquistas para perseguir a ilusão da virilidade, que desaparece, no entanto, assim que o ato é consumado. Elas também costumam ter um número maior de parceiros e se expor mais a situações de risco, como o sexo sem proteção.
Recorrer ao engano. Um Don Juan usa o engano com o fim exclusivo da sedução e, se necessário, para cobrir seus rastros.
Onipotência. Suas convicções o levam a acreditar que só ele compreende plenamente a verdadeira essência de homens e mulheres, entendendo que as relações entre os sexos são apenas um exercício de conquista, sem espaço para sentimentos.
Homofobia. Em termos psicodinâmicos e psicanalíticos, eles têm secretamente medo de ser homossexuais, e isso os leva a ridicularizar e estigmatizar qualquer tipo de condição ligada à homossexualidade.
Rivalidade. O Don Juan, secretamente, sente outros homens como hostis, mas essa hostilidade está realmente situada em sua própria projeção, porque é o Don Juan quem é hostil a eles. Ele compete com todos os homens, a menos que, é claro, esse outro homem assuma o papel de admirador de suas “façanhas”.
Infantilismo. Outra característica é a dificuldade marcante em seguir com compromissos e planos para o futuro.
Estado depressivo latente. Esses indivíduos lutam constantemente com o risco de perceber sua própria inadequação e se defendem tentando constantemente confirmar seu valor como indivíduo. São mais propensos ao abuso de álcool e jogos de azar, por exemplo.
Informações O Tempo