Já não me lembro se se chamava Manuela ou Maria a minha professora de datilografia numa escola pública na pequena cidade de Castelo Branco, em Portugal, na década de 90. Dominava uma máquina de escrever como uma instrumentista. Mas perdeu o emprego poucos anos mais tarde quando a disciplina saiu do currículo de ensino.
Quando a cadeira de dactylographia foi introduzida em Portugal, em 1847, prometia-se aos alunos que estariam “habilitados para a vida comercial e exercendo honrosos e lucrativos cargos no continente, ilhas, África e Brasil”. A verdade durou cerca de 150 anos.
Serão os jornalistas as novas Manuelas ou Marias? Quem solicitar hoje a um algoritmo de aprendizado profundo como o ChatGPT que escreva sobre a apresentação no tribunal do ex-presidente Trump, no dia 4 de abril, poderá receber, em poucos segundos, todo o tipo de texto (mais opinativo, mais analítico, apenas factual), com nuances e expressões idiomáticas em diferentes línguas. A qualidade, sinceramente, não é inferior à dos artigos sobre o mesmo tema produzidos por seres humanos para a imprensa brasileira.
Há duas perspectivas sobre esse fenômeno. A primeira salienta, com razão, que a inteligência artificial (IA) utiliza uma base de dados preexistente e, por isso, é um agregador de informação, não um criador. Para escrever sobre Trump, o ChatGPT apoiou-se (sem respeitar direitos de autor) em milhares ou milhões de notícias publicadas sobre o tema. Ou seja, a IA depende da existência prévia de jornalistas que criem o conteúdo. Também se argumenta que a IA poderá ser uma ferramenta de assistência ao jornalista, facilitando a contextualização, ajudando-o a escrever mais rapidamente, simplificando o alinhamento de textos a manuais de Redação, tentando encontrar novos ângulos para tratar uma reportagem.
Despertamos para a IA com o ChatGPT em 2023, mas já em 2018 a Forbes tinha lançado o Bertie, uma plataforma de IA que aprende o estilo de escrita dos jornalistas, identifica os tópicos sobre os quais normalmente escrevem e fornece sugestões para melhorar a qualidade de uma notícia (estilo, conteúdo, dados, fotos) ou recomenda tópicos de tendências em tempo real para cobrir.
O ChatGPT concorda com essa perspectiva minimalista da transformação. Diz ele que “a IA é atualmente mais adequada para tarefas repetitivas e padronizadas, enquanto o jornalismo envolve habilidades humanas como o pensamento crítico, a investigação, a análise de dados, a entrevista, a contextualização e a tomada de decisões éticas”. A Manuela ou Maria sobreviveriam à virose da inteligência artificial.
A segunda perspectiva já preparou o seu funeral.
A tendência a curto prazo é que a inteligência artificial possa analisar e interpretar imagens e vídeos, entender o significado de áudios e escrever textos originais. As máquinas não sentem. Mas disporão de ilimitados recursos para coletar, avaliar e produzir informações, sem intervenção humana. Serão capazes de entrevistar em tempo real e de detectar incongruências ou novidades na informação emitida pelo entrevistado. Poderão também ser as máquinas a dar, literalmente, a cara pelo conteúdo que produzem.
Já em 2018, a agência de notícias chinesa Xinhua apresentou o seu primeiro âncora de TV criado por IA, uma espécie de William Bonner algorítmico que pode comandar telejornais por dias seguidos, sempre atualizado. Os jornalistas humanos, como produtores e apresentadores de conteúdo (hard news), serão como aparelhos de fax, internet discada, telefone fixo ou máquina de escrever.
Mas não será o fim do jornalismo. Renascerá em pelo menos duas dimensões.
A primeira é a da checagem. O jornalista será aquele que apura, confronta e compara informações originalmente produzidas por IA. Um gatekeeper. O ponto de partida poderão ser as atuais agências de apuração de dados, criadas para verificar a credibilidade de discursos políticos ou a veracidade de informações que circulam nas redes sociais. Desde o surgimento, em 2003, da primeira plataforma de checagem de informações, o FactCheck.org, emergiram no Brasil cerca de uma dezena de projetos semelhantes, incluindo o Mentirômetro, desta Folha.
No Brasil, a revista piauí também tem uma coordenação de checagem que apura meticulosamente todas as informações produzidas pelos próprios autores, um trabalho que vai muito além da edição de texto.
Já em 1913, o americano Ralph Pulitzer foi o primeiro a criar, no seu jornal, o extinto New York World, uma equipe interna de verificação de dados para garantir a fidedignidade das informações prestadas ao público. A verificação de informações não é uma atividade menor do jornalismo, mas um dos seus fundamentos.
Outra dimensão é a do jornalismo investigativo, aquele que pressupõe bastidores, análise lacaniana do significado e significante de cada palavra sussurrada, acesso a fontes de informação confiáveis e interpretação cognitiva de informações não públicas. Para celebrar o seu centenário, a Folha destacou 100 grandes “furos” de reportagem. Quase nenhum poderia ter sido dado por uma ferramenta de IA.
As redações emagrecerão e haverá redução significativa de custos, mas talvez a IA tenha o efeito secundário de estimular o jornalismo a voltar à sua missão primordial de apuração crítica da verdade.
Hoje muitos jornalistas, principalmente os mais jovens, fazem um trabalho industrializado e escassamente remunerado, guiados mais pela estatística de impacto do que pelo pensamento crítico.
O futuro do jornalismo talvez implique um retorno ao ofício de artesão, o de criar objetos por meio da transformação da matéria-prima usando as mãos, a inteligência e a sensibilidade como os principais instrumentos de trabalho.
*Professor catedrático convidado na NOVA School of Business and Economics, em Portugal. Nomeado Young Global Leader pelo Fórum Econômico Mundial, em 2017
Rodrigo Tavares* – Folha – 5.abr.2023