Uma das primeiras medidas de um sistema de governo autocrático é perseguir artistas e combater qualquer forma de manifestação que ouse afrontar o estabelecido, e tanto pior se do que se encontra nesses trabalhos se passa a erigir a base para transformações essas, sim, em tudo revolucionárias. Pintor frustrado, Hitler encontrou no desprezo à arte verdadeiramente nobre uma válvula de escape para boa parte de sua mágoa contra a civilização, apostando as fichas maiores numa suposta inferioridade moral dos artistas, certamente medindo o mundo inteiro por sua régua deformada. Sua pretensão megalômana era de tal ordem que, em 1937, o Partido Nazista organizou uma espécie de circuito sobre o que deveria ser abominado por aspirantes a estetas alinhados com sua ideologia macabra. A exposição foi inaugurada em Munique e não demorou a peregrinar por toda a Alemanha, promovendo ataques grosseiros e infundados a qualquer ideia que lhe parecesse arrojada, isto é, perigosamente chegada ao que o restante do mundo entendia como progresso: liberdade de expressão, democracia, economia de mercado e, claro, integração racial, valores dos quais a humanidade não pretendia abrir mão. Sua escala facinorosa degringolou, dois anos depois, no início da Segunda Guerra Mundial, que se estenderia pelos seis anos seguintes — e lhe daria a ilusão de poder vingar o orgulho ariano, ferido desde que outros países da Europa, com destaque para a França, lhe abreviava um bom naco da receita advinda com a indústria farmacêutica e a produção de automóveis.
Em “Werk Ohne Autor” (2018), Florian Henckel von Donnersmarck alude a essa passagem da História, deslocando os acontecimentos de Munique para Dresden. Na introdução, o garoto Kurt, vivido inicialmente por Cai Cohrs, visita a exposição em que o guia de Lars Eidinger debocha de ninguém menos que Picasso, Mondrian, Kandinsky, Paul Klee, George Grosz. Sua tia Elisabeth, a personagem de Saskia Rosendahl, é quem lhe deixa claro, ainda que não precise dizer uma palavra, o quão equivocado é tudo aquilo, uma mistura de despeito e valorização macromaníaca bem ao estilo do Führer, espetáculo bizarro que deixava no ar o que se poderia esperar do regime que se ia fazendo conhecer.
Donnersmarck se inspirara na vida do alemão Gerhard Richter, talvez o maior pintor vivo, ainda em atividade. Nascido em 9 de fevereiro de 1932, Richter foi, como Kurt, tendo de se adaptar ao que o nazismo autorizava como digno de ser chamado de arte. O roteiro avança cerca de quatro décadas e o protagonista, assumido por Tom Schilling depois de adulto, continua submetendo-se a desmandos ideológicos mesmo após o ocaso da guerra, agora patrocinados pelos comunistas, difusores de uma excrescência chamada realismo socialista, que não deixava nada a dever ao nazismo em matéria de boçalidade e cerceamento à criação intelectual e estética. Ao longo de pouco mais de três horas de projeção, “Werk Ohne Autor” (“obra sem autor”, em tradução literal) destrincha cada conflito que se insinua no corpo do enredo sem afoiteza. Lembrando Tolstoi em clássicos da literatura mundial de tdos os tempos a exemplo de “Guerra e Paz” (1867) e “Anna Kariênina” (1878), o filme acompanha Kurt ao longo da vida, marcada por outra Elisabeth além da tia, internada numa “unidade de esterilização” para tratar da maneira mais abrutalhada a esquizofrenia que se apossa dela sem pedir licença. Já um adulto jovem, Kurt vai morar em Berlim na intenção de graduar-se em artes — malgrado saiba que terá de se sujeitar às diretrizes comunistas —, e conhece Elisabeth Seeband, a Ellie. Mesmo integrando a aristocracia tedesca e Kurt não passe de um estudante despossuído, a mocinha de Paula Beer se entrega a ele, sem saber que o pai, o professor Carl, um dos maiores ginecologistas do país, tem uma carta na manga caso o caminho dos dois teime em se cruzar. Mas o personagem de Sebastian Koch não é propriamente modelo de virtude para ninguém.
“Werk Ohne Autor” é um filme caudaloso, repleto de sugestivas reflexões, mas se há uma ideia-força aqui, é a que reza que arte nenhuma deve se sujeitar ao pragmatismo de quem deseja fazê-la útil. A arte existe porque viver é muito pouco e isso basta. Gerhard Richter que o diga.
Filme: Werk Ohne Autor
Direção: Florian Henckel von Donnersmarck
Ano: 2018
Gêneros: Drama/Romance
Nota: 9/10