Quanto mais distante se mantém de tudo quanto rescende a maldade, a distorção do imoral em regra, a ódio, primeiro apenas no discurso, mas que logo redunda para a militância e daí para a prática, mais próximo fica o homem de si mesmo — o que definitivamente não é garantia de que vá tornar-se bom. As luzes e sombras, reentrâncias e saliências, subidas e declives, toda a ambivalência que pode haver no espírito de cada um livra-nos da perdição, mas nos infunde situações em que o cerco se fecha a ponto de assaltar-nos a sensação de que vivemos num universo paralelo, lugar mágico e maldito onde crimes nunca acontecem, mas não somos os donos da nossa própria história. Somos então forçados a criar novos jeitos de nos relacionar com o mundo, que por seu turno muda a todo instante, avança e retrocede sem que possamos fazer nada a respeito a não ser tentar uma adaptação qualquer, ou nutrir expectativas menos fantasiosas sobre a vida e seus mistérios, processo que não raro degringola em obsessão, paranoia, frustrações, melancolia, tristeza.
O desajuste fundamental do homem para com o mundo, o existir, os outros homens vêm como um lembrete de que mecanismos de repressão nunca poderão ser dispensados da rotina do cidadão comum, que pensa ser capaz de se livrar dos impedimentos a sua felicidade subvertendo o quanto possível a dureza do real, o que, evidentemente, não consegue. Se o homem comum se dá conta de que não lhe compete se empenhar em mudanças tão profundas, indivíduos psiquicamente descompensados têm certeza de que a vida é o que eles querem, e esse é o limite entre o caos e o inferno. O finlandês Juuso Syrjä oferece novas perspectivas a uma das séries mais inovadoras dos últimos anos, deslindando um pouco mais a atmosfera noir que a envolve, ao passo que redobra a atenção para seu personagem central. “Bordertown: A Eliminação” desvenda alguns dos segredos da trama de Miikko Oikkonen, mas tem o cuidado de guardar o melhor para o final, deixando margem para que se avente a possibilidade de novos enredos conduzidos por um detetive bastante peculiar.
O roteiro de Oikkonen e Antti Pesonen dificulta um pouco mais a vida de Kari Sorjonen, o investigador da série homônima, que se depara com um cenário de indizível horror. Ville Virtanen continua dando a esse homem o ar de um profissionalismo quase cínico, que se confunde mesmo com um desdém pelo resto da humanidade, até que se convence de que se não sair de seu isolamento físico — que, claro, se reflete em sua visão de mundo e, pior, atrapalha a melhor execução de seu ofício — está condenado a nunca superar os erros de um passado recente. Janina, a filha interpretada por Olivia Ainali, virou uma mulher independente e que banca suas próprias vontades, agora dedicada à carreira acadêmica; Lena Jaakkola, de Anu Sinisalo, se lhe parece ainda mais hostil e Katia, a filha de Lena vivida por Lenita Susi, tem de se esconder da mãe depois de uma atitude inconsequente. Sua vida só não é uma total perda de tempo e energia porque se ocupa de um assassino em série que usa o sangue de suas vítimas para pintar muros, e dessa vez Lasse Maasalo, seu arqui-inimigo, papel de Sampo Sarkola, aparentemente não tem nenhuma relação com a carnificina, uma vez que segue preso. Aparentemente.
Syrjä é hábil em fechar e abrir dramáticos ao sabor das necessidades da história, dispondo da maturidade artística de Virtanen, que vai emprestando a seu protagonista a dose precisa de cada uma das diversas emoções que o tornam um personagem tão pouco óbvio. A dobradinha entre o diretor e sua estrela faz de “Bordertown: A Eliminação” um thriller inteligente, mas nada pretensioso, que permite que a audiência também jogue e tire suas próprias conclusões.
Filme: Bordertown: A Eliminação
Direção: Juuso Syrjä
Ano: 2021
Gêneros: Crime/Drama/Mistério
Nota: 8/10
Informações Revista Bula