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O ensaísta espanhol Miguel de Unamuno (1864-1936) dissera acertadamente que a vida é esquecimento. Precisamos escolher do que queremos nos lembrar, que trechos menos felizes de nossa jornada temos de varrer para debaixo do tapete da memória, que circunstâncias devem ocupar em nós um quinhão privilegiado de nossas vivências. Relações humanas são pródigas de situações esquecíveis, marcadas por episódios humilhantes que, embora tenham se prestado a nos dar algum grande ensinamento numa fase mais crítica, merecem apenas o vazio do desprezo. Que outro sentimento consegue ser a um só tempo fonte de deleite e de opróbrio se não o amor, relicário dos tesouros mais valiosos e das vergonhas mais inescapáveis e profundas do gênero humano? Passam-se os séculos, as revoluções sucedem-se umas após as outras, guerras dizimam povos em nome da honra e da manutenção do regime civilizatório, mas a ânsia do homem por amar e ser amado — passando a larga distância da rejeição e da derrocada moral, por óbvio —, é um pressuposto a que ninguém renuncia.

Livremente inspirado em “Jacques, o Fatalista, e Seu Amo” (1778), romance do iluminista francês Denis Diderot (1713-1784), o francês Emmanuel Mouret discorre sobre uma mulher avant la lettre em “Mademoiselle Vingança” (2018), história ambientada numa época em que ideias como feminismo, empoderamento, liberdade de expressão e mesmo dignidade não passavam de uma quimera para as mulheres, seres inferiores e naturalmente submissos, até que uma se cansa e resolve ir à forra. Essa fábula sobre aristocratas entediados cuja grande diversão era urdir adultérios e outras armadilhas emocionais no transcorrer do século 18 não por acaso assemelha-se muito a outro símbolo da literatura francesa do período, o que só confirma o argumento da elite abrutalhada que se esconde sob sedas e penteados ostensivos, elemento que Anne Bochon valoriza num minucioso trabalho de reconstituição da moda então vigente. Num mundo sem internet ou redes sociais, grã-finos de estirpes variegadas driblavam o esplim armando uns contra os outros, como se lê em “Ligações Perigosas” (1782), o típico novelão, saído da pena de Choderlos de Laclos (1741-1803), esse desabridamente antropofagizado pela cultura pop contemporânea em pérolas pós-modernas a exemplo de “Segundas Intenções” (1999), dirigido por Roger Kumble, e o recentíssimo “Justiceiras” (2022), levado à tela por Jennifer Kaytin Robinson.

Madame de La Pommeraye, a personagem-título, é a viúva rica, já entrada em anos, mas ainda bonita, que se retira da corte do rei Luís 15 (1710-1774) para o luxo de uma faustosa herdade no interior da França. Cécile de France imprime a essa mulher a versatilidade que o papel exige, uma vez que, no começo da história, a protagonista apresenta-se num misto de conforto e senso de autoproteção quase paranoico, escaldada por relacionamentos desditosos e resistindo não sem alguma dificuldade às investidas do marquês d’Arcis de Edouard Baer, um rematado casanova que se jacta de suas conquistas sem qualquer pejo, tendo o cuidado de fazer cada vítima se sentir como a primeira e a última. Baer absorve à perfeição a essência do personagem, um fescenino que, tal como o Sébastien Valmont de Laclos, sabe muito bem como tirar proveito das vulnerabilidades alheias, especialmente em se tratando de mulheres. Como sói acontecer em obras de ficção, se desenrolam eventos que permitem que o marquês vá alongando sua estada na propriedade da Madame de La Pommeraye, que pensando estar diante de um novo homem, mais maduro, mais sereno, mais homem, finalmente, cede a seus encantos.

Na iminência do terceiro e último ato, Mouret acrescenta as personagens que dão o fecho grandiloquente a seu roteiro, sempre fiel à pena de Diderot. Entram em cena a Madame de Joncquieres da bem escalada Natalia Dontcheva, a nobre outrora digna, mas caída em desgraça ao engravidar de outro nobre, que tal como o marquês d’Arcis faz à Madame de La Pommeraye, também a abandonara, e ainda mais importante, sua filha, a Mademoiselle de Joncquieres — o título em inglês igualmente alude a essa personagem como a responsável por conduzir o enredo, tamanho seu destaque —, vivida pela irresistível Alice Isaaz.

“Mademoiselle Vingança” conserva o ar de folhetim setecentista ao condensar no encerramento as boas reviravoltas da trama, em que De France reaparece com o protagonismo da introdução, sem que os demais tipos se apaguem. Alguns sabidos dizem que narrativas como essas estão datadas, “envelhecem mal” e xaropadas que tais. O noticiário hard news não se cansa de desmenti-los.


Filme: Mademoiselle Vingança
Direção: Emmanuel Mouret
Ano: 2018
Gêneros: Drama/Romance
Nota: 8/10

Informações Revista Bula

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