Talvez a única obviedade de “O Suplente” seja mesmo a excelência, o pluralismo, a genialidade dos filmes argentinos. Depois de um debute estrepitoso no Festival Internacional de Cinema de Toronto, o TIFF, no Canadá e provocando ainda mais rebuliço na premiação de San Sebastián, na Espanha, o trabalho de Diego Lerman foi seguindo uma trajetória constante de um encantamento reflexivo ao capturar o espírito do tempo, de implacável crítica às perenes desigualdades sociais, mais ou menos equivalentes ao redor do mundo, e moldá-lo a um recorte muito íntimo da vida em sociedade a partir de um universo cheio de idiossincrasias. Cada vez mais instada a representar segmentos diferentes, pessoas diferentes, a escola congrega entendimentos utópicos sobre temas diversos que se completam e os de todo incongruentes entre si, bem como a ausência de toda a deambulação pela filosofia mais rasteira. Parece que só a poesia tem o condão de selar todas as percepções, e então começa a despontar, afinal, o herói desse enredo.
O texto de Lerman e outros quatro roteiristas aproxima-se, guardadas as justas medidas, de “Sementes Podres” (2018), em que o comediante irano-francês Kheiron vale-se de sua, digamos, experiência extraclasse para motivar adolescentes a um passo da delinquência. O filme do argentino, contudo, não deixa vácuo para blagues entre tolas e mordazes, e Lucio Garmendia, o candidato a herói vivido por Juan Minujín, até fisicamente parecido com Kheiron, esbarra no desafio de inspirar em seus alunos o gosto pela literatura, malgrado saiba que, para tanto, tem de conseguir desviar da relação vertical que só serve aos protocolos e aprofundar-se na realidade que agora o rodeia, o cotidiano na escola de um bairro afastado da periferia de Buenos Aires, cheia de jovens rejeitados pelo sistema e, ainda que não o percebam, bastante inconformados por isso. Conservando a tradição, o diretor nunca lança mão de uma frase, de único gesto que seja de maneira gratuita, e a sequência de abertura delineia com fidedignidade o que se vai assistir ao longo de 111 minutos: um homem que se levanta pela manhã bem cedo carregando sobre os ombros o peso das frustrações e dos malogros que, alheios a seu empenho, não poderá evitar.
As subtramas em “O Suplente” encadeiam-se de modo mais ou menos orgânico, dando uma profundidade aflitivamente humana ao personagem de Minujín, que mata tudo no peito e segue convencido da vitória até o final — sua vitória, não de Lucio. O physique du rôle do protagonista, algo chapliniano, denuncia mesmo que o professor há de passar por maus bocados, e, por paradoxal que soe, a classe acaba sendo a menor de suas preocupações. Quando não está na sala algo caótica, de janelas amplas que dão para carros e caminhões se deslocando em alta velocidade, Lucio tem de desdobrar para cuidar de Chileno, o pai filantropo interpretado com toda a segurança por Alfredo Castro, padecendo de uma doença terminal, e visitar Sol, a filha depressiva, de Renata Lerman, na casa de Mariela, a ex-mulher vivida pela não menos certeira Bárbara Lennie. Seu elo verdadeiramente emocional com o ofício, para além dos muros do colégio, toma corpo na figura de Dilan, o traficante juvenil com nome e alma de poeta, capaz de entrar em qualquer noite pouco acolhedora com toda a doçura, mas ávido por emular o espírito aventureiro de trovadores ainda mais despojados.
O desfecho não reserva nenhuma guinada surpreendente para Lucio. No entanto, o substituto, aquele que entra numa porção de vidas sem nunca deixar-se abater, como a sombra da palmeira no mar tormentoso, sai como chega. Infeliz.
Informações Revista Bula