O apocalipse vem como se em ondas, arrastando os homens para o centro de eventos sobre os quais não tem nenhum controle, dominado por circunstâncias que tomam-lhe anos até que se esclareçam. O recorte que “Infiesto” faz de uma catástrofe do nosso tempo, um misto de incúria, negligência, desmazelo e horror, presta-se a alicerce de uma espiral de mistérios, indóceis à vontade de quem se esmera por desvendá-los. A partir de março de 2020, a humanidade passou a ter de acarar o resultado diabolicamente palpável de décadas de degradação ambiental, constituída de uma convivência promíscua e desrespeitosa entre seres humanos e o meio que os acolhe, transformada num genuíno caos à medida que se foram avultando a inépcia e o descaso com que se conduziu o problema. Patxi Amezcua, o diretor deste thriller policial ousado e definido por reviravoltas surpreendentes, equipara esse cenário de incertezas e atrocidades ao que conta, durante pouco mais de hora e meia, acerca do que se reveste da aura de um mero plano para encobrir intentos ainda mais hediondos.
A pandemia de covid-19 foi ainda mais devastadora em Infiesto, uma cidadezinha pacata nas Astúrias, norte da Espanha, segundo o texto do diretor-roteirista, que se aproveita do cenário bucólico — metamorfoseado numa espécie de vilarejo medieval sombrio e envolto por uma bruma de morte graças à fotografia plena de elementos em verdes-oliva e amarelo queimado — para despistar as atenções do público e confundi-lo um pouco mais a cada cena. Os acontecimentos do filme de Amezcua e o modo como os destrincha assemelham-se muito a “Marshland” (2014), de Alberto Rodríguez, sem licença para deambulações retóricas e investindo maciçamente na violência conforme fica mais claro que alguma coisa de muito obscuro se passa nos limites do povoado. A Espanha foi um dos países que acusaram com maior veemência o golpe da peste, e na esteira de um isolamento nefasto, de consequências para a integridade mental ainda desconhecidas, tem início a série de desaparecimentos e sequestros, mormente de mulheres jovens, que afronta Samuel García, o inspetor-chefe vivido por Isak Ferriz e tanto mais Castro, sua adjunta, de Iria del Río.
García e Castro estão sempre a uma cabeça da identidade do facínora responsável por todo o calvário em que Infiesto tem se perdido. Se por um lado essa incapacidade de resolver um caso aparentemente sem maiores consequências depõe contra a dedicação dos aguerridos policiais interpretados por Ferriz e Del Río, por outro é precisamente o jogo de gato e rato proposto por Amezcua o que mantém a história quente mesmo em momentos em que parecia fadada ao tédio, à espreita nas sequências em que os dois se enfurnam em salas enevoadas para deliberar sobre os próximos movimentos. Na virada do clímax para o desfecho, ao cabo dos seis primeiros dias do confinamento obrigatório a que Infiesto e a Espanha como um todo foram compelidos a se sujeitar, o diretor começa a tirar os travos dos olhos da plateia ao elencar suas escolhas metafísicas, tão delirantes quanto sofisticadas, para a avalanche de tragédias que soterrara aquele éden degenerado, aludindo a um estranho ritual da mitologia celta praticado pelos druidas, os sábios desse povo milenar e desconhecido, no equinócio de primavera. O sacrifício de seres humanos em clamor de novos tempos de serenidade é a mentira mais cínica dos falsos profetas de ontem e de hoje.
Filme: Infiesto
Direção: Patxi Amezcua
Ano: 2023
Gêneros: Suspense/Drama/Policial
Nota: 8/10
Informações Revista Bula