Disposta a manter a estrutura de delírio do livro que lhe deu origem, a diretora peruana Claudia Llosa reproduz na tela a angústia das páginas de “O Fio Invisível” (2021). O livro da escritora argentina Samanta Schweblin, publicado em 2014 e muito bem recebido pela crítica, já parece um filme por natureza ao observar a dinâmica do thriller, mas Llosa consegue enxugá-lo de modo a ressaltar o argumento central e fazê-lo absorver a linguagem do cinema sem que a narrativa tenha de se precipitar, sem que os eventos se sucedam uns por cima dos outros. O filme consegue apresentar cenas ora intensas, ora comoventes, realçando a força do enredo, hábil em falar de vida e de morte numa mesma sequência, provocando sensações díspares que oscilam entre o encantamento por uma trama que valoriza uma emoção nem sempre explorada em filmes: a incomunicabilidade.
Amanda, a portenha refinada vivida por María Valverde, leva Nina, a filha de cinco anos interpretada com graça por Guillermina Sorribes Liotta, numa viagem de verão ao interior da Argentina. Elas são recepcionadas por Carola, uma mulher um pouco mais velha e muito experiente, que parece completamente deslocada ali. A figura cosmopolita de Dolores Fonzi dá esse tempero de modernidade e tradição à personagem, ainda que ela intencionalmente valorize a primeira e sufoque esta. Neste primeiro segmento de “O Fio Invisível”, Valverde e Fonzi disputam palmo a palmo o domínio da cena, e se vislumbra com mais clareza o arco dramático de Amanda e Carola. Com mais em comum do que supunham, as duas tocam a maternidade como uma condição bastante controversa na vida da mulher. O alívio espiritual de ser responsável pela criação de alguém, fonte de conforto quando a vida claudica por qualquer motivo em alguma das suas tantas categorias, cede lugar ao desespero de ter de tomar medidas extremas para tirar um filho da boca da morte. Por outro lado, ao mesmo tempo em que Amanda tenta escapar de dores do passado que continuam a persegui-la, Carola se empenha por dar a volta por cima desde que seu marido caíra em desgraça e perdeu a fazenda em que moravam.
A atração entre Amanda e Carola, sugerindo um envolvimento amoroso que permanece tensionado, sugerido, mas evidente, é a conjuntura que faltava quanto à partilha de impressões em comum sobre ser mãe. Vem à baila uma tal “distância de resgate”, título original do livro de Schweblin, apresentada como o afastamento seguro entre mãe e filhos, que se torna uma obsessão para Amanda. Como se houvesse mesmo uma corda física a separá-las, o segredo para manter o controle da situação é permitir que ela estique o mínimo possível, o que fomenta outros impasses. Como saber em que medida esse fio pode ser esticado? De que forma tomar pé das preocupações de um filho tolher seu livre arbítrio? Nem todos podem responder a essas indagações, ima vez que, antes de mais nada, se precisa chegar ao comprimento do fio.
As inquietudes de Amanda não são sentidas por Carola, uma vez que um acontecimento do passado a fizera ter de se afastar do filho, David. O garoto, vivido por Emilio Vodanovich, adoecera há alguns anos e a curandeira de Cristina Banegas dera parte do espírito de David a outro corpo para mitigar os efeitos da moléstia. Para tentar salvar o filho, a personagem de Dolores Fonzi tivera de abdicar do amor por ele, alegoria empregada por Schweblin a fim de fazer seu leitor refletir sobre as incoerências da maternidade, oportunamente aproveitada por Llosa, que faz com que o estranhamento de Amanda sobressaia, só para Nina ficar doente logo em seguida e ela se veja diante do mesmo dilema de Carola. Com isso, a diretora consegue dar a seu filme a aura de mistério capaz de completar a história, tendo o cuidado de não tornar as coisas nebulosas demais. A própria escritora coassina o roteiro de “O Fio Invisível” com Claudia Llosa, que tem elaborações estéticas saborosas, como a da sobreposição de um cavalo e um homem em contraplano, dando a ideia de serem uma só criatura, um centauro, ente monstruoso que alude diretamente à desajuste do homem no mundo, bem como à urgência por se lutar pela vida, equação cuja resposta pouca gente tem. O espectador pode se sentir perdido em algumas passagens da narrativa, entretanto a fotografia de Óscar Faura literalmente ilumina o olhar da audiência, com a luz solar resvalando na lente. À medida que a história avança, mais se quer saber até onde vai o enigma mais importante do longa, alimentado por uma outra situação cujo caráter oculto é ainda mais potente.
O cinema hispânico tem se caracterizado por valorizar o melhor de sua cultura, e com “O Fio Invisível” não é diferente. Nele, é patente o texto surrealista de Jorge Luis Borges (1899-1986), aliado ao componente de luta social de Lucrecia Martel, e cada um desses valiosos predicados fala a artistas contemporâneos que já deixaram sua marca no cinema, como Christopher Nolan, com seu perfeccionismo visual, e Denis Villeneuve, mestre em subverter o conceito de tempo e torná-lo ainda mais relativo. Num enredo de ameaças nada óbvias, o filme de Claudia Llosa faz da imaginação o sentido mais importante da natureza humana, até porque todo medo é gerado, antes de mais nada, pela ansiedade de não se conhecê-lo. O que não conseguimos imaginar não pode existir.
Filme: O Fio Invisível
Direção: Claudia Llosa
Ano: 2021
Gênero: Suspense
Nota: 8/10
Informações Revista Bula