Todo cuidado é pouco quando se decide abordar temas vastos e complexos demais para caber num único filme. O êxodo massivo de pessoas que fogem da miséria, da fome, da perseguição por razões políticas, ideológicas e religiosas pode dar azo a uma história plena de lirismo, a despeito do quão profundo se condicione a ir na exploração sincera e comedida de um drama planetário, e em “Adú”, resta claro que o propósito do espanhol Salvador Calvo é, sim, emocionar, mas usar do sentimento mais puro, expresso pelo olhar amedrontado de um garoto na primeira infância, a fim de conduzir o público por uma viagem longa, fadigosa, plena de incertezas e riscos, encadeando outras duas tramas que vibram sob o mesmo diapasão, ainda que em direções opostas.
A serenidade de uma mesquita ao anoitecer contrapõe-se à massa de imigrantes em situação irregular pulando o muro que separa o Monte Gurugu, no extremo norte marroquino, e o campo que dá acesso ao monte Gibraltar, por onde acessam a Europa pela cidade espanhola de Melilla, flagrada pelas lentes de Calvo, e a beleza da fotografia de Sergí Vilanova é um elemento perene quanto a se absorver na justa medida a ambivalência de “Adu”. Se por um lado, uma construção de quase meio milênio, alva de um branco resplandecente, destaca-se como um espectro benfazejo num Marrocos estigmatizado por desigualdades de toda natureza, por outro, pontos quase amorfos brilhando num fundo acinzentado, feito células observadas a um microscópio, tentando desesperadamente achar um meio mais favorável, começam a delinear a tragédia de Adú, o menino involuntariamente negligenciado por Safí, de Bella Agossou, a mãe que precisa cuidar também de sua própria subsistência, além de prover outros dois filhos, um mais novo, e a primogênita. Zayiddiya Dissou rouba a cena na pele de Alika, que à diferença do irmão menor, sabe perfeitamente o que acontece; é possível ter uma boa ideia de como o roteiro de Alejandro Hernández vai se desembaraçar apenas concentrando-se em seu olhar, sempre no limite do compungido e do furioso. Uma sequência ainda no primeiro ato dá uma ideia do sofrimento da garota, que não pode dividir com ninguém mais, e, pouco depois, quando são forçados a se lançar numa aventura suicida nas estranhas de um avião, o talento de Dissou une-se ao senso artístico, instintivo e certeiro, de Moustapha Oumarou, que revela, afinal, o vigor do pequeno astro, inesperadamente sozinho — ou ainda mais sozinho — num cenário tão desolador quanto o de origem. Seu redentor atende pelo nome de Massar, um rapaz dez anos mais velho, preto e desvalido como ele, e até o desfecho, a subtrama da amizade inusitada dos dois é o que definitivamente torna o filme algo de excepcional.
Os conflitos de um homem branco e solitário às voltas com pesados empecilhos a seu trabalho como guarda florestal numa reserva de paquidermes, aumentados à potência do intolerável com a chegada da filha, até o fim motivo de preocupação e graves suspeitas, só não chafurda no tedioso porque muito bem defendidos por Luis Tosar. Gonzalo, seu personagem, personifica anseios de outra categoria quanto a integridade do continente africano como um todo, e a parceria com Anna Castillo na pele de Sandra, a patricinha hippie chique que, a custo, sai um pouco do figurino, amarra o tétrico da vida de Adú e Massar. Quanto ao entrecho do meio, entre as narrativas dos dois pequenos forasteiros e da nova família refeita numa selva sob ameaça sem limite, Calvo poderia ter nos livrado dessa.
Filme: Adú
Direção: Salvador Calvo
Ano: 2020
Gênero: Drama
Nota: 9/10
Informações Revista Bula