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O recurso da repetição temporal já foi exaustivamente aplicado em narrativas durante a história do cinema, procurando exaltar o plano do personagem central de se redimir de determinado erro ou mesmo de uma conduta delituosa. “Feitiço do Tempo” (1993), dirigido por Harold Ramis (1944-2014), decerto o mais famoso deles, além de divertir por meio do argumento nonsense, suscita no público a reflexão sobre o verdadeiro suplício que seria acordar todos os dias num momento da vida já experimentado anteriormente e que se sabe que não acaba bem, cenário que o meteorologista Phil, de Bill Murray, é obrigado a suportar no enredo.

Por mais que se assemelhe a “Feitiço do Tempo” (2020), o caso de “Dois Estranhos”, todavia, tem particularidades que aludem a escolhas estilísticas e, claro, à gravidade do mote. O filme de Travon Free e Martin Desmond Roe destaca o bom trabalho de composição do músico Joey Badass como Carter James, um homem negro de classe média alta que, depois de passar a noite com uma desconhecida, só deseja voltar ao apartamento em que mora sozinho com seu pitbull a fim de alimentá-lo — embora se faça o merchandising descarado de um aparelho, acionado por um aplicativo de celular, que libera pequenas porções de ração enquanto o dono do animal não volta. Contudo, malgrado Badass dê conta do recado com galhardia, o que importa mesmo em “Dois Estranhos” são os desdobramentos de um evento que não deveria ter importância alguma na trama, mas que se mostra fundamental a fim de esclarecer o que se vai assistir na sequência.

Free e Desmond Roe se valem da realidade austera do negro nos Estados Unidos ainda hoje para abordar a crueldade por trás de um sistema que simplesmente se viciou na discriminação velada (ou nem tanto) de indivíduos que, em tese, seriam livres e gozariam dos mesmos direitos e teriam a obrigação de cumprir as mesmas leis que os demais, e, no entanto, estão alijados dessa condição elementar da cidadania por não serem brancos, ou não se encontrarem representados por qualquer das letras que integram a sigla WASP (white, anglo-saxons and protestants, ou brancos, anglo-saxões e protestantes), uma vez que imigrantes, latinos e asiáticos, sobretudo, e judeus, mormente os ortodoxos, são vistos como a escória da sociedade na América. Nesse aspecto, se eleva o caráter documental do filme, uma vez que a ficção se orienta pela bússola inflexível da realidade, refletindo-a, destacando sua natureza abjeta, repudiando a persistência imoral com que se perpetua.

O espectador não desgruda os olhos da tela desde a primeira tomada, que apresenta cenas prosaicas de Nova York, como o fluxo de carros pela ponte do Brooklyn, que liga Manhattan, o centro nervoso da megalópole, ao subúrbio, onde Carter mora. A exposição do personagem de Badass como um sujeito meio marginal, ainda que não seja pobre, despojado sobre a cama de uma mulher que conhecera horas antes, dá uma pálida ideia do que pode sofrer um homem negro em situação parecida com a dele, enfatizando-se que aqui, nem mesmo sua condição socioeconômica favorável lhe socorre, já que se trata de um sujeito desconhecido no bairro, que deixa um prédio de apartamentos a horas prematuras da manhã e ainda tem o péssimo hábito de fumar em público. Isto é, com Carter, Free e Desmond Roe apresentam um dos infinitos painéis a se desdobrar sobre o preconceito racial — e, neste ponto, pouco importa se nos Estados Unidos ou não: essa é a praxe em qualquer biboca do globo, de Nova York a São Paulo, passando ainda por um grande número de capitais da Europa, em que se registra a olho nu o incremento da presença de imigrantes desde 2017, quando foi realizado o censo mais recente, que revelou que o Velho Mundo abriga mais de 4% de não-europeus, cerca de trinta milhões de pessoas. Nos Estados Unidos, a amostra é numericamente a mesma, mas a proporção é duas vezes e meia maior: a população da América é composta de 10% de imigrantes, muitos deles ilegais. A maioria, negros e pardos.

A força de “Dois Estranhos”, que por meio da situação fantástica de um homem negro que, por mais que tente evitar, não consegue evitar ser caçado e morto por um policial branco reiteradas vezes, transcende o ativismo épater la bourgeoisie, gratuito. O destemor do filme, ganhador do Oscar de Melhor Curta-metragem em 2021, ombreia com outros premiados pela Academia, a exemplo de “Green Book: O Guia” (2018), de Peter Farrelly. O sangue que verte de um homem, assassinado por quem deveria se encarregar de lhe permitir viver, é vermelho como o de qualquer um, mas escorre com uma frequência acintosa. Chame-se esse homem George Floyd ou João Vítor.

Informações Revista Bula

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