O crítico de arte Roger Scruton (1944-2020), reconhecia, por óbvio, a importância das máquinas para o desenvolvimento do gênero humano, ávido por todas as vontades e com todos os apetites a saciar. Contudo, o britânico também sempre esteve muito atento para a verdade insofismável que atesta que com a evolução cada dia mais certa de mecanismos de toda ordem, prontos a submeter o homem a ultrajes os mais humilhantes e quiçá até mesmo subjugá-lo, a pior das consequências foi ver a beleza sendo relegada ao papel de mera coadjuvante, sufocada pelas economias de mercado que emporcalham tudo quanto tocam e decretam que tudo pode ser belo e, sacrilégio dos sacrilégios, tudo pode ser arte. Com os meios de produção operando mediante dispositivos automatizados, o mundo ia perdendo muito de sua ingenuidade, sua ternura e, por conseguinte, seu sentimento do belo, daí a arte não poder jamais prescindir da estrita observação de todos os paradigmas canônicos no que concerne ao requinte estético. Como o suicídio, segundo o sociólogo francês Emile Durkheim (1858-1917), é a única questão que importa na vida, dada sua complexidade dos pontos de vista sociológico, metafísico e religioso, basta que nos mantenhamos longe, bem longe da perdição do homem do capital e nos ponhamos frente a frente de nossos tantos dilemas inescapáveis. Quiçá a beleza seja o maior deles.
Máquinas se sobrepõem a homens, que se sobrepõem entre si, se magoam, se ferem e se matam. Duas vidas em pedaços, unidas por um fio de beleza, se projetam em “O Solista” (2009), em que o diretor Joe Wright se esmera por contar a história de dois homens à procura de uma reconexão qualquer com o que foram um dia, em busca do tempo e da beleza perdidos. Wright enxerta em seu filme as entradas quase imperceptíveis com que prepara o terreno para circunvoluções sobre temas que marcam o roteiro de Susannah Grant. Amor, desamor, ódio e, principalmente, indiferença, loucura, caos e morte são uma constante na narrativa, oscilando de um para o outro protagonista, sem prejuízo da inteligibilidade da história, baseado no livro homônimo do jornalista americano Steve Lopez.
Loucos são loucos sem a permissão ou ainda a interferência de quem quer que seja. Talvez um dos aspectos mais cruéis das psicopatologias é sua vastidão: existe uma infinidade de jeitos de se contrariar o padrão, todos mais ou menos capazes de se moldar à personalidade de quem desejam parasitar. No caso de Nathaniel Ayers, a esquizofrenia tem boa dose de responsabilidade quanto a tê-lo feito um raro talento ao violino. Para ser preciso, o que ele toca é, na verdade, um instrumento assemelhado ao violino: alquebrado pelos anos, seu onipresente companheiro conta com apenas duas cordas, ele, por óbvio, já ouviu falar de Beethoven, mas tem um repertório limitadíssimo — a sequência em que Nathaniel executa um mesmo trecho de uma peça erudita estarrece, primeiro pelo incômodo sonoro em si, mas logo em seguida, antes ainda que a câmera mire seu outro alvo no decorrer de 116 minutos de projeção, se pode concluir que aqui o desconforto é um estado de espírito, tanto num como no outro.
Jamie Foxx dá show na pele de Nathaniel, acompanhado cabeça a cabeça por um Robert Downey Jr. irretocável num papel dramático, sobre os quais ele não tem se debruçado, lamentavelmente. Sua interpretação de Steve Lopez, colunista do “Los Angeles Times”, complementa o personagem de Foxx, tanto no que o artista de rua tem de bom como (e ainda mais) na melancolia essencial que define Nathaniel. Ao primeiro encontro dos dois, numa construção abandonada, seguem-se muitos outros, ocasiões em que o personagem de Downey Jr., a muito custo, vai conseguindo desarmar a reserva do outro, não mero capricho ou uma birra inconsequente, mas o mecanismo que lhe facultou chegar a certa altura da vida gozando de toda a liberdade — inclusive para continuar morando sob marquises e entre colunas de viadutos, absorvendo os ruídos e a alma da diabólica Cidade dos Anjos que o ignora. Lopez, por sua vez, é um dos melhores profissionais de imprensa da América, mas um desastre na vida pessoal, como atesta seu relacionamento com a colega e ex-mulher Mary Weston, da notável Catherine Keener.
Wright é habilidoso quanto a passar a bola de Nathaniel para Lopez, sedimentando a instabilidade emocional de sua dupla de personagens centrais ao passo que sugere os caminhos que um e outro devem tomar em sua jornada de mudança de vida. Mais que um filme sobre a solidão patológica e seu desdobramento imediato e certo, a loucura, “O Solista” é um libelo em favor da sabedoria. A vida só faz algum sentido se for mesmo um eterno vir a ser.
Filme: O Solista
Direção: Joe Wright
Ano: 2009
Gêneros: Musical/Drama
Nota: 8/10