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Amantes povoam o inconsciente coletivo há muito tempo, de certo modo inspirando o cidadão comum a também nutrir suas ilusões de casamento perfeito — aos olhos da sociedade — com ampla margem para vivências extraconjugais que ao cabo de um tempo mais ou menos breve deixam pelo caminho uma fieira de egos cheios, corações destroçados, mágoas inexpugnáveis de parte a parte e não raro filhos desassistidos que, tomados pelo desespero, optam por decisões sem volta. Decerto a primeira história de um amor desditoso a capturar o público no contrapé, sem muita ideia do êxito que iria alcançar foi “Anna Kariênina”, do novelista russo Liev Tolstói (1828-1910). Tão popular quanto acerbo, o caso fictício entre a protagonista, Anna Kariênina, mulher de Alieksiéi Kariênin, alto comissário do czar Alexandre II, com o Conde Vronsky, oficial da cavalaria, foi um escândalo junto à aristocracia da Rússia imperial. Anna pede o divórcio, mas Kariênin, além de não aquiescer, ainda a impede de ver o filho. O casamento, claro, termina mesmo assim, bem como o romance extraconjugal e o fim da anti-heroína é o pior possível. Homem com os dois pés muito bem fincados na realidade, Tolstói jamais imaginara ter escrito um dos enredos de amor vívido, desamor oculto e ódio manifesto mais longevos se todos os tempos, não por acaso levado às telas cinco vezes, entre 1935 e 2012. Muito mais dado à louvação de seus pares e da audiência, o alemão Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832) — escritor, poeta, diretor de teatro, crítico cultural, um generalista por natureza — conseguiu exprimir muito (mas não tudo) do abatimento de espírito do personagem central, desiludido, cônscio da impossibilidade de seu amor por Charlotte, prometida em matrimônio a Albert. Talvez não existam dois homens de letras mais díspares entre si que Tolstói e Goethe, gênios no mesmo ofício, donos de trajetórias longevas (ambos morreram com a mesma idade, 82 anos, um assombro tanto no século 18 do germânico como no 19, atravessado pelo russo) e bem-sucedidas, mas que enxergavam o amor — e por óbvio a vida ela mesma — por prismas diametralmente opostos. E por essa justa razão, complementares.

Querendo ou não, a dinamarquesa Barbara Rothenborg fora capaz de condensar em boa medida o melhor de Tolstói e de Goethe numa história cheia de altos e baixos ao falar de um casamento que deveria ter findado, mas que ao se prolongar indefinidamente — alicerçado na areia fina da vaidade e da hipocrisia — implica um cenário de desabrida loucura. Trata-se de “Um Marido Fiel” (2022), drama com notas de suspense em que a ânsia pela verdade se sobrepõe à verdade em si. O roteiro de Anders Rønnow Klarlund e Jacob Weinreich centra a história na figura de um casal aparentemente acima de qualquer suspeita, aparentemente apaixonado, aparentemente feliz e aparentemente normal. Como se vê, as aparências não só não enganam como podem ser um componente elementar na vida de duas pessoas que escolhem viver juntas, constituir uma família e enfrentar as vicissitudes do dia a dia. Rothenborg explora bem os pequenos, ínfimos sinais que explicariam a nuvem de paranoia que flutua sobre Christian e Leonora, quarenta e poucos anos e um filho, Johan, dezoito, recém-saído de um grave problema de saúde e prestes a se formar no ensino médio.

Os personagens de Dar Salim e Sonja Richter terminam de educar Johan, de Milo Campanale, na casa construída sob medida à beira lago, permeada por um bosque denso. Nem poderia ser de outra forma, uma vez que Christian é um dos mais bem-sucedidos arquitetos do mercado, e muito de sua excelente reputação profissional se deve a Xenia, a arquiteta-assistente vivida por Sus Wilkins, com quem mantém um caso. A vida do trio — não há muito a se especular acerca de Johan — conservar-se-ia numa paz de cemitério não fosse o imprevisto que sucede nos bastidores da festa que a empresa de Christian oferece para comemorar um negócio importante, gancho para todos os eventos trágicos que passam a se desenrolar na história.

A diretora trabalha bem a psicopatia da dupla de protagonistas, oferecendo a Wilkins farto material para que também sua personagem, uma coadjuvante que cresce além do esperado, mostre a que veio. Numa análise ligeira, tudo leva a crer que Xenia seja de fato a grande vilã do filme, como Leonora sugere, mas causa espécie o jeito como Klarlund e Weinreich subvertem os papéis, revelando aos poucos quem é quem, momento em que a loucura da personagem de Richter vem à tona. Ex-virtuose que abandonou uma carreira promissora como violinista, Leonora não abre mão do marido adúltero e tampouco do casamento aos pedaços por um mero capricho. Nesse ponto, a narrativa dá uma guinada algo farsesca — trata-se de um suspense, certo? —, à Adrian Lyne ou Brian de Palma, conduzindo o longa para o desfecho literalmente catártico.

É cedo para se dizer como “Um Marido Fiel” há de se sair junto a plateias mais amplas, mas pode-se dizer sem receio que a condução de Rothenborg garante 105 minutos de poucas certezas e ótimas possibilidades de se exercitar o faro detetivesco que pulsa em cada um, assistindo-se uma imensa fogueira de veleidades diabólicas queimar um circo de horrores.


Filme: Um Marido Fiel
Direção: Barbara Rothenborg
Ano: 2022
Gêneros: Drama/Suspense
Nota: 9/10

Informações Revista Bula

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