Todos nós temos nossos mistérios, indecifráveis, por mais que pensemos o contrário. Entretanto, quando a aura de segredo torna-se nossa maior qualidade, é óbvio que há alguma coisa de muito errado. Esse é o mal de Leda Caruso, a professora de literatura comparada vivida por Olivia Colman, perdida, ou melhor, assolada por suas lembranças. Talvez houvesse solução para um de seus muitos sofrimentos, mas ela não parece tão interessada. Escrava da vida que teve e que já não tem há muito, sem nunca se decidir entre se deixar envolver pelos braços frios do passado ou encarar a realidade, por mais dura que seja, mas sempre melhor, por trazer consigo uma esperança de transformação, a protagonista de “A Filha Perdida” é uma mulher tomada pelo desespero. Um desespero que a paralisa.
A adaptação de Maggie Gyllenhaal, de 2021, para o romance homônimo da escritora Elena Ferrante é um debute respeitável da atriz na direção. Publicado em 2006, “A Filha Perdida” narra as desventuras de uma mulher fragmentada, incapaz de lidar com a verdade e suas consequências, ou pelo contrário, tão acostumada a ter de encarar verdades tão contundentes que tem de aumentar a dose um pouco mais a cada dia, a fim de provar a si mesma que está viva. E foi por aí mesmo que Gyllenhaal se embrenhou, sem pejo, como Ferrante, de apontar as contradições de Leda, empenhando-se por tentar encontrar o X do problema da personagem.
Logo no início de “A Filha Perdida”, Ferrante expõe o caráter autodestrutivo de Leda da forma mais pungente que poderia. A personagem de Colman é obstinada em suas obsessões, aferrada a suas guerras interiores e, ao mesmo tempo, vulnerável, instável, fraca. Leda age por impulso, como um animal, só para meio minuto depois estar completamente arrependida, vexada, imitar um sentimento de empatia qualquer do jeito que pode e tornar a meter os pés pelas mãos. A meta de Gyllenhaal no filme é, no mínimo, manter a narrativa nesse fio tênue que aparta a tensão da psicopatia; os indícios pelos quais se orienta, contudo, são meio duvidosos, uma vez que Leda seja levemente inclinada a preferir esta àquela.
Alter ego da própria autora, de quem se sabe pouquíssimo — Elena Ferrante é o pseudônimo hispânico de uma autora napolitana, e pelo visto vai continuar a sê-lo por muito tempo —, Leda tenta usufruir de um breve período de descanso numa cidade litorânea da Grécia, e tudo segue em razoável normalidade: ela dispõe de todo o sossego do mundo para ler seus livros, preparar suas aulas, fazer apontamentos, sem descuidar de também aproveitar a exuberância que a rodeia, tomando banhos de mar e se estirando ao sol. O apartamento que Lyle, o zelador atencioso interpretado pelo veterano Ed Harris, consegue para ela é iluminado, amplo, arejado. Leda consegue suportar as investidas cavalheirescas de Lyle sem maiores sobressaltos, e, o principal, sem escândalos — afinal, ela é uma dama, uma acadêmica, uma alma sensível acima de tudo — e parece que vai viver mesmo dias felizes, ou menos melancólicos. Mas seus planos de tempos de paz fazem água.
A chegada de uma família numerosa (e barulhenta) põe seus nervos à prova, com gente mal-educada, mal-acostumada, espaçosa, grosseira, a atrapalhar sua leitura. Dona de uma capacidade incomum de se adaptar às adversidades de um meio estranho que vai se tornando hostil consoante a trama se desenrola, muito graças a seu temperamento emocional, Leda acaba por elaborar um jogo mental em que se dedica a traçar o perfil de um daqueles tipos exóticos, o que mais a toca, por uma razão especial. Trata-se de Nina, personagem de Dakota Johnson, que brinca com Elena, de Athena Martin, sua filha. Mesmo essa sua diversão aparentemente pouco convidativa lhe é negada: Leda tem um entrevero gratuito com Callie, cunhada de Nina, a matrona ainda fresca de Dagmara Dominczyk, grávida aos 42 anos, uma antítese perfeita de tudo o que se tornara. Como tudo em “A Filha Perdida” é oblíquo, a rusga entre as duas se presta a aproximá-las, malgrado não se tenha muita convicção acerca das reais intenções de uma e outra.
A questão da maternidade, realizada plenamente no caso de Callie, com todas as renúncias que isso implica, e frustrada em maior ou menor proporção quanto a Nina e, por evidente, Leda, vem à tona com um evento que as coloca ainda mais próximas. O pouco que se sabe a respeito emerge graças às caudalosas sequências em analepse, momento em que Olivia Colman cede lugar a igualmente talentosa Jessie Buckley que, justiça se lhe faça, se expõe muito mais que a ganhadora do Oscar de Melhor Atriz pela performance como a rainha Ana da Grã-Bretanha (1665-1714) em “A Favorita” (2018), de Yorgos Lanthimos. Nesses flashbacks, a jovem Leda é mostrada como uma histérica, mas seu drama é real. Vítima da armadilha que preparou para si mesma, a da maternidade precoce e idealizada, Leda tenta se equilibrar entre a carreira como tradutora e ensaísta, que desponta celeremente, e a educação das filhas, Martha e Bianca. Ao perceber que o interesse do professor Hardy, o acadêmico badalado de Peter Sarsgaard, vai muito além de seus rematados conhecimentos na obra do poeta irlandês William Butler Yeats (1865-1939), Leda joga para o alto o casamento já meio arrefecido com Joe, de Jack Farthing, e toma a decisão que impacta sua vida para sempre.
Gyllenhaal se arrisca ao tentar captar todo o estado de completa balbúrdia de uma personagem que não tem todo o interesse que seria necessário para, ao menos, botar o nariz para fora desse pântano — e a Academia tem verdadeira fixação por diretores com esse grau de arrojo, tanto melhor se estreantes. A despeito de levar ou não o homenzinho dourado para casa — e ela merece —, Maggie Gyllenhaal compõe um dos melhores filmes sobre os conflitos da existência, inerentes a qualquer ser humano. Como se vê, 2022 será um ano de insurreições também no cinema.
Informações Revista Bula