A voz rouca das ruas consagrou que ninguém conhece a receita do sucesso, mas que para fracassar é muito fácil: basta querer agradar todo mundo. Cada homem é um universo particular, com suas ideias próprias, suas vontades próprias, necessidades as mais íntimas, tantas expectativas acerca da vida, ainda que saiba que pode nunca chegar a alcançá-las. Para o homo sapiens, a espécie mais curiosa encontrada sobre a Terra, é extremamente difícil submeter-se a regramentos contrários a sua formação contestatória. Malgrado fundamental para a vida em sociedade, a fim de suportarmo-nos uns aos outros, enquadrar-se não tem quase nada de prazeroso. O homem apenas reflete a própria natureza, de que também é parte, indisciplinada, selvagem, caótica. Aceitar o mundo como o conhecemos, ao mesmo tempo em que temos a capacidade de rumar para outras vidas, em que as circunstâncias mais absurdas são o que pode haver de mais corriqueiro, sempre foi uma constante na vida do ser humano, que se vale do artifício a fim de, em largando tudo, abandonar sua própria vida e acessar o mais obscuro de seu espírito, no intuito de apreender o cenário em que está inserido e, assim, conduzir sua vida de uma maneira mais adequada. Por óbvio, surgem percalços no caminho, as coisas saem do terreno do previsível e os enfrentamentos são inevitáveis. As guerras são um capítulo à parte na confusa trajetória do gênero humano, escrito com o sangue de indivíduos que se esmeraram por reparar erros que não eram seus e emoldurado por vidas que não tinham relação alguma com o que se passava: a morte investida da mais brutal, da mais covarde violência, as tolhe, e é só. Além de soldados destemidos, há quem se envolva numa guerra apenas por dever cívico e sem nunca ter pisado num campo de batalha, esforçando-se por garantir que tudo se resolva da melhor maneira. A primeira vítima numa guerra é a verdade, e só a verdade salva. Apesar dos incontáveis mistérios da existência, muito mais do que nossa vã filosofia pode supor, como disse aquele bardo inglês, é pelo rigor da vida como ela é que devemos pautar nossa conduta. Tentamos, alguns menos que outros, e uns poucos com convicção, e o perigo reside exatamente aí. Há mil descaminhos ao longo de uma vida, e todos eles, por mais retos que possam se mostrar, conduzem à perdição. Resumidamente, são esses os enredos de duas produções de que a Bula trata hoje, “As Espiãs de Churchill” (2019), de Lydia Dean Pilcher, e “Ilha de Segredos” (2021), dirigido por Miguel Alexandre. Eles, e mais três filmes da nossa lista, lançados entre 2018 e este 2021, acabaram de aterrissar no catálogo da Netflix e estão pacientemente esperando uma folguinha sua no fim de semana que se avizinha para mostrar a que vieram. A vida dá voltas, o mundo gira, e a gente tem de ir junto. Ou não?
Imagens: Divulgação / Reprodução Netflix
Ilha de Segredos (2021), Miguel Alexandre
A vida pode se apresentar particularmente difícil logo nos nossos verdes anos. É assim para Jonas, cujos pais acabaram de morrer, o que o faz ter de ir morar com o avô. Jonas tem de se equilibrar entre a dor do luto e a necessidade de seguir vivendo, afinal há uma vida inteira pela frente. O amor, inesperado, ajuda, mas uma outra dificuldade se impõe: o desejo. Helena, a professora substituta de alemão que vai morar no vilarejo, vira a cabeça do garoto, que sequer se imagina como parte de uma maquinação dessa mulher cheia de segredos profundos, talvez até mortais.
Mimi (2021), Laxman Utekar
Viver é mesmo uma aventura e, em sendo assim, vale tudo por um sonho? É o que pergunta o diretor indiano Laxman Utekar em “Mimi”, remake da produção de 2011. A protagonista é uma dançarina que só pensa em fazer carreira no cinema. A vida de Mimi segue sem maiores sobressaltos — nem progressos —, quando ela é sondada por Bhanu, motorista de aplicativo, sobre se aceitaria servir de mãe de aluguel a um casal de americanos. Para isso, seria muito bem paga, claro, mas uma questão dessa natureza implica uma decisão pensada, o que para Mimi é impossível. Como não poderia deixar de ser, todos os planos saem de controle e ninguém mais se entende em meio a uma situação que se torna tão incômoda como a barriga de gestante para Mimi.
Estranho Passageiro — Sputnik (2020), Egor Abramenko
No ponto mais alto da disputa pelo espaço entre Estados Unidos e União Soviética, a Orbit-4, nave que levava uma tripulação russa, volta com um único ocupante vivo. Ele está desmemoriado e, portanto, a investigação a fim de se saber o que teria acontecido com o restante da equipe vai ser mais difícil do que se pensava. O astronauta permanece isolado numa instalação do governo, tratado como um criminoso, à espera de Tatiana Klimova, psicóloga encarregada de averiguar o que teria se passado e por que o astronauta se esqueceu de tudo quanto viveu ao longo da missão. Essa é a única possibilidade de se decifrar o enigma.
As Espiãs de Churchill (2019), Lydia Dean Pilcher
Em 1941, ainda no meio da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), a americana Virginia Hall já passou por boa parte dos países da Europa, aprendeu muitos idiomas e quer ser diplomata; Vera Atkins, romena, tem planos mais modestos: se naturalizar cidadã do Reino Unido. Enquanto isso não acontece, trabalha como a principal assistente de um adido militar no quartel-general inglês, em Londres. Já Noor Inayat Khan, apesar do nome, é britânica de nascimento, filha de mãe americana e pai indiano, e telegrafista do QG. As três receberam treinamento a fim de se tornarem espiãs profissionais durante o conflito, por reunirem mais chances de não serem identificadas pelos alemães, uma ordem vinda diretamente do primeiro-ministro Winston Churchill (1874-1965). Virginia e Noor, mandadas à França, diminuíram a resistência do nazismo no país, sendo lembradas ainda hoje como heroínas.
Leave no Trace (2018), Debra Granik
A diretora americana Debra Granik é hábil em retratar adolescentes em meio ao bombardeio dos tantos conflitos típicos da idade. Em “Leave no Trace”, Granik traz a história de Will e Tom, pai e filha. Os dois são os únicos moradores de uma grande reserva florestal nos limites de Portland, e não têm o menor problema com o isolamento, questionado pelas autoridades — que nunca se importaram com eles. O serviço social os obriga a deixar a área, e agora Will e Tom passam a ser tutelados pelo governo dos Estados Unidos. Eles não se conformam com tanta interferência num assunto íntimo e tentam retornar à vida feliz que tinham, driblando as novas necessidades que as circunstâncias os impõem.