Por Cézar Oliveira, médico e jornalista
Demorei um pouco ao nascer, mas tenho certeza que foi porque não consegui achar meus óculos naquele redemoinho placentário, e tive que esperar ser levado pela correnteza. Então, se tive vida antes dos óculos apaguei da memória, talvez, por não ter visto o que aconteceu. Especialistas apontam que metade da população usará óculos por volta de 2050. Ficaremos a uma armação de sermos maioria na sociedade e iremos tão longe quanto a vista alcançar.
Acho que usar óculos causa grande impacto na formação intelectual e sexual. No meu caso, ele inibiu duas vocações. A primeira, de jogador de futebol, pois a bola foi ficando indistinguível. Comecei como centroavante e fui recuando até goleiro, mas um frango histórico foi a humilhação terminal. Jogando na linha vivia o drama de tirar os óculos para cabecear e errar o alvo, ou manter os óculos, quebrar de novo a armação e ultrapassar a marca de três surras dadas por minha mãe. A outra, foi de cirurgião. Além de míope sou alérgico, o que gera uma coceira incontrolável da máscara e embaçamento dos óculos. Teria de contratar uma auxiliar só para fazer trocas durante a cirurgia evitando algum frango com o bisturi nas coronárias do paciente. Então, tive que me dedicar aos livros e acabei sendo o que sou, por vias tortas.
Nós somos os últimos a arranjar uma namorada. Eu mesmo só cheguei lá depois que noivei com três bananeiras do meu quintal. Mas, como as mulheres bem sabem, nós somos mais esforçados em cuidar delas.
No mundo atual, em que não basta manter os olhos abertos, mas enxergar as coisas às claras, perder os óculos vira um drama, afinal, precisamos dos óculos para acharmos os óculos. Me impressiona que já estejam fazendo vôo de drone em Marte e ainda não tenham inventado um sinalizador que guie um ao encontro do outro- mesmo que esteja dentro da geladeira- sem atropelar tudo no caminho.
Meus filhos nasceram com problemas na visão. O filho levou de boa; a filha demorou de aceitar. Pegava nos óculos mil vezes por dia, o que o deixava impregnado de digitais. Toda vez que chegava em casa dizia imediatamente:
– Lava meus óculos, pai
– Pronto filha, passei sabão porque estava muito sujo e gorduroso e enxuguei.
– Ô pai, é tão bom quando você limpa. Cê nem imagina, parece que vejo outro mundo.
Crescemos assim, eu tentando fazê-la ver o mundo como era, até que passou no Vestibular de Medicina, em Campinas, e eu disse que ia morar lá sozinha para estudar. Ela só perguntou:
– Mas pai, quem vai lavar meus óculos?
O que precisava ser feito tinha de ser feito, mas já fazem muitos anos, filha. É hora de voltar. Eles devem estar muito sujos. ( César Oliveira)