Por Carlos Sampaio
“Uma velha muito velha
Foi mijar numa ladeira,
Encheu rios e riachos,
Inundou uma ribeira!
Três engenhos pararam,
Um frade se afogou,
E o diabo desta velha
Ainda diz que não mijou! ”
(Fernando Jorge – “Que velha exagerada”! ).
Fernanda Montenegro tem 92 anos. A Academia Brasileira de Letras 124 anos.
Fernanda Montenegro foi atriz a vida inteira. A ABL tem por objetivo o cultivo da língua portuguesa e da Literatura Brasileira.
Os que praticam as “artes cênicas” (atriz/ator) são pessoas que dão vida e voz a um personagem, decoram as falas, interpretam.
A ABL acolhe os melhores escritores da nação, após análise de obras literárias.
A Arte Cênica ou Teatro divide-se em cinco gêneros: Trágico, Dramático, Cômico, Musical e Dança.
A Arte Literária se organiza em três gêneros básicos: narrativo, lírico e dramático. Eles são classificados de acordo com critérios semânticos, sintáticos, fonológicos, formais, contextuais.
São duas artes diferentes.
Fernanda Montenegro sempre foi atriz, nunca foi escritora. Ou melhor, jamais escreveu uma obra que tivesse grande valor literário.
Então, o que fez Fernanda Montenegro de extraordinário para entrar na Academia Brasileira de letras, esse seleto lugar, dentro de um país que tem 220 milhões de habitantes, mas somente 40 “escolhidos” entram e são chamados de imortais?
Ela mesmo responde, na maior cara-de-pau, em entrevista dada ao Globo, em 05/11/2021:
“Lembro que cruzei com Afonso Arinos algumas vezes, uma figura elegante e referencial, e ele sempre me disse: ‘Fernanda, entre na Academia’. Eu respondia: ‘Mas eu? Eu sou só uma atriz, não tenho livro!’ Ele insistia: ‘Escreva um livro e entre na Academia’. Agora veja esse milagre: a Academia me aceita e ele me antecede. Vai explicar um fenômeno desses.”
Dica dada. Conselho aceito. Fernanda a atriz, agora vai virar escritora. Contrata a jornalista Marta Góes e juntas escrevem o livro “Prólogo, Ato, Epílogo”, uma espécie de autobiografia escrita a duas mãos, onde relembra os fatos mais importantes de sua carreira. A obra foi publicada pela Companhia das Letras e lançada em 10/10/2019 em um shopping do Leblon, na zona sul do Rio.
Pronto. Agora nada mais faltava. Já tinha um livro. Podia se tornar imortal.
Diz o Estatuto da Academia:
Art. 2º – Só podem ser membros efetivos da Academia os brasileiros que tenham, em qualquer dos gêneros de literatura, publicado obras de reconhecido mérito ou, fora desses gêneros, livro de valor literário. As mesmas condições, menos a de nacionalidade, exigem-se para os membros correspondentes.
Em 6 de agosto inscreveu sua candidatura na ABL. Disse ela, cinicamente:
“Eu me inscrevi e me ausentei. Não dei entrevista, não cavouquei espaço nem temperei uma chegada. Isso não me compete. Me propus e saí de cena. Como atriz, meu papel é me preparar. Só se entra em cena quando chega a hora.”
Recebeu votos de 32 dos 35 imortais da Academia Brasileira de Letras.
Palmas! Roteiro perfeito! Tudo conforme o planejado! Uma martelada no cravo, outra na ferradura. Fechem o pano.
Os críticos literários desapareceram do solo da nação brasileira.
É preciso que alguém explique o “valor literário” da obra de Fernanda Montenegro.
Como não há mais críticos literários, os jornalistas disseram que como atriz ela deve ser uma grande romancista. Ou poetisa. Ou, sei lá, uma grande biógrafa de si mesma. Alguém precisa explicar, registrar, tão notável obra que teve tão grande merecimento. Ou foi tudo uma grande patifaria?
No livro “A Academia do Fardão e da Confusão: a Academia Brasileira de Letras e os seus ‘Imortais’ mortais”, o jornalista Fernando Jorge, critica a eleição de “personalidades” para a ABL, ou seja, pessoas influentes na sociedade, mas cuja principal ocupação não era a literatura e que, muitas vezes, produziam materiais apenas para que pudessem ser eleitos, nunca mais voltando a produzir qualquer obra de valor literário.
O pesquisador também critica o processo eleitoral, pois este não seria feito com base nos “méritos literários dos candidatos”.
Bingo! Enquadrou perfeitamente Fernanda Montenegro.
De dentro de suas tumbas, escritores consagrados da Literatura Brasileira, mas que nunca fizeram o jogo dos “Acadêmicos”, que não foram “amigos dos amigos”, que criticaram a ABL e perceberam que ela perdeu o respeito quando virou “agrupamento de escritores conformistas e políticos poderosos e vaidosos”, oferecem uma retumbante vaia a Fernanda Montenegro:
– Lima Barreto, Monteiro Lobato, Carlos Drummond de Andrade, Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Júnior, Graciliano Ramos, Cecília Meireles, Clarice Lispector, Vinícius de Moraes, Erico Verissimo, Mário Quintana Paulo Leminski, Jorge de Lima, Gerardo Melo Mourão, António Cândido de Mello e Sousa, Autran Dourado, Rubem Fonseca, Dalton Trevisan, Raduan Nassar.
E mais apupos e vaias para a ABL, porque tornou “imortais”, figuras como:
– Getúlio Vargas (político), Aurélio de Lira Tavares (membro da Junta de 1969), José Sarney e Fernando Henrique Cardoso, ex-presidentes da República; o senador pernambucano Marco Maciel, ex-vice-presidente da República; o político catarinense Lauro Müller; o médico Ivo Pitanguy, cirurgião plástico; o inventor Santos Dumont, que apesar de suas grandes contribuições científicas, não se dedicava à produção literária; Assis Chateaubriand, magnata das comunicações no Brasil entre o final dos anos 1930 e início dos anos 1960; Roberto Marinho, fundador do maior império de mídia do país; Merval Pereira, jornalista colaborador da Rede Globo; e Paulo Coelho.
O ato de Fernanda Montenegro, a “Grande Dama do Teatro”, é uma afronta aos escritores brasileiros, um desestímulo a todos os professores e estudantes de Literatura, uma pancada na cabeça dos críticos literários (se é que ainda existe algum) e um chute na inteligência e boa-fé de todos os brasileiros.
É uma afronta aos escritores porque expõe claramente que eles precisam ser “amigos dos amigos” para poderem ser reconhecidos;
É um desestímulo aos professores e estudantes de Literatura, porque mostra com nitidez as entranhas da cultura brasileira, como ela se move e a quem ela prestigia.
É uma pancada dolorida na cabeça dos “Críticos Literários”, porque eles não sabem o que criticar em uma obra aclamada por unanimidade pela ABL.
É um chute na inteligência e boa-fé dos brasileiros, porque eles jamais imaginavam que uma “senhora” de 92 anos seria capaz de cometer uma ignominia dessas contra a rastejante Literatura da nação, que não possui um único prêmio Nobel de Literatura.
Fernanda Montenegro é a velha dos versos que abre o texto: mijou em uma ladeira, afogou o país inteiro, não tem ideia dos malfeitos e nem da extensão de seu ato e ainda diz que não mijou. Relembrando:
“Uma velha muito velha
Foi mijar numa ladeira,
Encheu rios e riachos,
Inundou uma ribeira!
Três engenhos pararam,
Um frade se afogou,
E o diabo desta velha
Ainda diz que não mijou! ”
(Fernando Jorge – “Que velha exagerada”!).
Informações Jornal da Cidade