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Foto: Divulgação/Saban Films
Uma vida sem sobressaltos num lugarejo perdido em algum rincão do Velho Oeste deveria ser a expressão máxima da plenitude para um grupo social que se habituou a nunca esperar nada de quem quer que seja. Entre essas almas pias e um tantas simplórias está Patrick Tate, o protagonista de “Terra Sem Lei”. Emile Hirsch parece ter incorporado o espírito do artesão a que dá vida no filme e compõe um personagem rico de nuanças, como se saído da melhor carpintaria do cinema. A se tomar apenas o personagem de Hirsch, se tem a impressão de que Ivan Kavanagh, irlandês como seu anti-herói, quer abordar temas os mais amenos possíveis, mas a tranquila vida testemunhada por uma ou outra colina marcada pelo tempo, para lembrar Giacomo Leopardi (1798-1837), de longe em longe a observar aquela felicidade de vidro, vai caindo por terra, quase sem se notar, abalada pela vinda de um visitante malquisto, que acaba ficando de vez, para o desespero dos ditos homens de bem. Como se por encanto, de um momento para o outro a paz que reinava por ali cada vez mais dá lugar a dias de ânimos exaltados, agitação do espírito e gozo efêmero do corpo, uma realidade caótica que degringola em tumulto, caos, morte. Uma nova ideia de obediência ao Estado se institui, a própria noção de Estado se deteriora, ao passo que aqueles que poderiam insurgir-se, elevar sua voz e exigir que tudo se mantivesse como sempre houvera sido, comodamente, covardemente, se calam. Era essa a última barreira a ter de cair para que vingasse um regime anárquico, primitivo, em que tornaria a valer a máxima do olho por olho, dente por dente, até que o vilarejo fosse um reino inglório de cegos e desdentados. O horror, o horror!

A relação entre dois tipos que deveriam se repelir e se odiar é o ponto de partida do roteiro de Kavanagh, western sobre as tantas contradições humanas num lugar sem esperança, amaldiçoado pelos mais baixos apetites da matéria. O diretor-roteirista se inspira em ninguém menos que no Sérgio Leone (1929-1989) de “Por Um Punhado de Dólares” (1964), que por sua vez nasceu da adaptação de “Yojimbo” (1961), dirigido por Akira Kurosawa (1910-1998). Aqui, como na mexicana San Miguel idealizada por Leone, o desencontro entre a lei e os interesses escusos de figuras como o caubói sem nome vivido por Clint Eastwood, talvez o papel em que tenha flertado mais desabridamente com a zona cinzenta que separa mocinhos de vilões, cresce à medida que fundem-se sutilezas retóricas como moral, ética ou decoro somem na bruma árida de Garlow, ao norte da Trilha da Califórnia, que vem desde o Missouri. Tão insistente quanto a Trilha ou Eastwood, firme em seu propósito de vencer o tempo, é o personagem central do longa de Kavanagh, estritamente ligado a essa realidade de anomia, por mais que não se possa nunca admitir qualquer justificativa para a barbárie — legitimada pelo cenário selvagem que rodeia aquelas pessoas, universo paralelo sem qualquer vestígio de ordem, como insinua o título em português. Ao contrário do que se atesta no clássico do italiano, no trabalho do irlandês não se vislumbra nenhuma circunstância em que o anti-herói e o antagonista possam se tornar amigos, e isso faz Kavanagh marcar uma cruz na coronha sobre Leone.

O carpinteiro Tate, em nada semelhante ao tipo encarquilhado e dado a gracinhas que rivalizava com o protagonista de “Por Um Punhado de Dólares”, leva uma vida modesta, mas digna junto com a esposa francesa Audrey, de Déborah François, e os dois filhos, Emma e Thomas, de Molly McCann e Quinn Topper Marcus. Os preceitos religiosos evocados pelos Dez Mandamentos são mencionados obstinadamente pelo reverendo Samuel Pike, personagem de Danny Webb, casado com uma mulher 25 anos mais jovem, Maria, interpretada por Antonia Campbell-Hughes. Ninguém se opõe à autoridade nem de Deus nem do cura, mas a chegada de um forasteiro, imigrante como quase todos ali, implode os castelos de areia de serenidade e mansidão de Garlow. Kavanagh começa a sustentar parábolas instigantes com a entrada em cena de John Cusack encarnando Albert, o Holandês, um fora-da-lei que começava a ganhar fama na América profunda. Vestindo preto da cabeça aos pés, além do chapelão de abas largas que verdadeiramente o distingue dos outros, Albert parece completamente imune ao ambiente de falsa piedade de que a cidadela tanto se orgulha — e nisso, infelizmente, está coberto de razão, como se assiste na sequência em que, como o reverendo Pike, também se põe a dizer um sermão para a senhora Crabtree, de Anne Coesens, que vai lhe pedir emprego, mas recusa suas condições. O vilão caricato e nada óbvio de Cusack faz do achatamento de cada um dos pilares da frágil civilidade daquele fim de mundo dos Estados Unidos de meados do século 19 sua profissão de fé e dissemina sua catequese às avessas instalando um prostíbulo a uma parede da igreja de Pike. Ali, no desfecho da história, ele e Tate acertam suas contas, manchando de sangue um Cristo crucificado e aturdido com o descaminho dos dois, uma das imagens mais terrificantes do cinema dos nossos dias.


Filme: Terra Sem Lei
Direção: Ivan Kavanagh
Ano: 2019
Gêneros: Faroeste/Drama
Nota: 9/10

Informações Revista Bula

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