Um bate-boca daqueles, com dedo em riste e cenhos franzidos, engrossou o tom de uma reunião do Comitê de Auditoria Estatutário da Petrobras na semana seguinte ao Carnaval. Ainda era de manhã e dois diretores tentavam justificar aos membros do comitê a aprovação de um negócio recém-celebrado que, no cálculo da própria estatal, resultará em um prejuízo de 487,1 milhões de reais.
O negócio em questão prevê o pagamento de 759,2 milhões de reais para que a petroquímica Unigel produza fertilizantes sob encomenda da Petrobras, que, por sua vez, ajudará na produção fornecendo gás natural como matéria-prima e suas próprias fábricas, uma na Bahia e outra no Sergipe. Essa modalidade do novo contrato, na qual uma companhia encomenda produtos industrializados de uma terceirizada, é chamada de tolling.
Os preços dos fertilizantes estão em uma baixa global, o que torna a empreitada tão desvantajosa. O valor de venda havia subido com a crise energética na Europa no fim de 2021, chegando a 5 mil reais por tonelada, e manteve-se elevado com a invasão da Ucrânia pela Rússia no primeiro semestre de 2022, o que resultou em entraves logísticos ao país de Vladimir Putin e aliados depois das sanções. Começou então a cair no final de 2022 e bateu em 1400 reais por tonelada em junho de 2023. Em fevereiro de 2024, estava em 1740 mil reais por tonelada.
Para piorar, o gás natural, insumo para a produção dos fertilizantes, está mais caro. Entre 2021 e 2023, os preços médios do gás para o segmento industrial no Brasil aumentaram 37,7% — de cerca de 2,73 reais para 3,76 reais por metro cúbico. Os preços praticados entre a Petrobras e a Unigel, porém, não são de conhecimento público. O fato é que, com matéria-prima cara e valor de venda baixo, o fertilizante se tornou uma bomba para quem produz.
Além da contabilidade desfavorável para a Petrobras, o contrato chama a atenção por um componente político: a relação de longa data do PT com o engenheiro químico Henri Armand Szlezynger, bilionário de 87 anos dono da Unigel, empresa que atravessa grave crise financeira e que conta com esse tolling para voltar a respirar.
O negócio foi formalizado em 29 de dezembro do ano passado, na semana entre o Natal e o Ano-Novo. Do lado da estatal, os papéis foram assinados pelo diretor de processos industriais e produtos, William França, e pelo gerente executivo de tecnologia de refino, Rodrigo Abramof.
Naquela reunião tensa com o Comitê de Auditoria, França estava acompanhado de um outro executivo, o diretor financeiro e de relacionamento com investidores, Sergio Caetano Leite. Os dois diretores estavam na linha de fogo. Em três denúncias internas que chegaram ao compliance da Petrobras, eles foram acusados de pressionar funcionários da estatal para que refizessem as análises de riscos, a fim de que o negócio não parecesse tão desfavorável. A alegada pressão surtiu efeito: os cálculos foram refeitos e a previsão do rombo – que poderia ser de 722,6 milhões, em cenário com vigência de doze meses – caiu para 487,1 milhões de reais no cenário menos danoso possível, de oito meses.
Em sua defesa, os dois diretores rechearam de dados uma apresentação de PowerPoint indicando que o tolling era uma opção melhor que outros cenários nos quais teriam de desfazer a parceria já existente com a Unigel, que ocupa desde 2019 as mesmas duas fábricas citadas para o novo negócio. Naquele ano, a companhia arrendara as fábricas para produzir fertilizantes por conta própria – comprando gás, produzindo os fertilizantes e depois vendendo o produto.
A apresentação citava uma série de riscos mais altos em outros cenários, caso o tolling não fosse adotado, como tomar de volta as fábricas, esperar que a Unigel as devolvesse por não ter mais condições de operar e até deixar as máquinas “hibernando” (ligadas, com consumo mínimo de insumos, mas sem produtividade). Para todos esses cenários, atribuiu-se um risco “muito alto” de calote na compra do gás a até possibilidade de ações judiciais da Unigel pedindo de volta o dinheiro investido em melhorias. Os prejuízos, a depender do caminho tomado, poderiam passar de 1 bilhão de reais, justificaram os diretores. Na visão deles, o melhor mesmo era arcar com o rombo de quase meio bilhão de reais.
O clima na reunião na Petrobras esquentou quando um dos integrantes do Comitê de Auditoria, Fábio Veras de Souza, considerou esses cenários fantasiosos e começou a inquirir os diretores. Com dedo levantado, Veras disse que a tabela de riscos era enganosa, que as explicações estavam incompletas e que eles estavam prejudicando a governança da estatal, o que os diretores negaram enfaticamente.
Divulgado em primeira mão pelo colunista Lauro Jardim, do jornal O Globo, o contrato ainda não foi ativado e não se gastou nenhum centavo, mas auditores do Tribunal de Contas da União (TCU) defendem sua suspensão, pelo caráter desvantajoso do negócio, e devem investigar as condutas dos gestores. A área técnica do tribunal, que começou a avaliar o contrato em janeiro, registrou em um relatório que as análises da Petrobras são incoerentes e levaram a uma “subavaliação dos riscos do contrato de tolling”, essa modalidade na qual a estatal é quem paga pela operação, e “superavaliação dos riscos das demais alternativas”, aquelas listadas no PowerPoint.
Está na mesa do ministro Benjamin Zymler, relator do processo no TCU, um pedido de sua área técnica para suspender o negócio, sobre o qual ele ainda não tomou uma decisão, pois aguarda mais informações.
Nas últimas semanas, a piauí conversou com pessoas que acompanham o caso, analisou documentos ainda não tornados públicos e rastreou as amarrações políticas do acordo junto ao Palácio do Planalto. Conforme integrantes da alta administração da Petrobras, o ministro da Casa Civil, Rui Costa, ex-governador da Bahia, é um dos maiores interessados no negócio e acompanhou de perto a realização do acordo. O contrato, se concretizado, pode salvar da bancarrota um grupo que, ao longo dos últimos dezoito anos, fez doações eleitorais e criou uma relação de proximidade com o PT da Bahia, que se mantém viva até hoje.
As empresas do Grupo Unigel e seu sócio controlador, Henri Armand Szlezynger, fizeram desde 2006 doações oficiais que somam 3,57 milhões de reais a candidatos do PT na Bahia e à ex-presidente Dilma Rousseff, segundo registros no Tribunal Superior Eleitoral contabilizados pela piauí. Os valores são nominais. Corrigido pelo IPCA, o montante equivale a 6,46 milhões de reais.
A relação começou na eleição de Jaques Wagner para o governo da Bahia, em 2006. Naquele ano, a Acrinor Acrilonitrila do Nordeste S.A, uma empresa adquirida pelo Grupo Unigel em 1997, doou 50 mil reais. Na reeleição de Wagner, em 2010, foram 750 mil reais. No mesmo ano, Rui Costa, então secretário de Relações Institucionais da Bahia, lançou-se candidato a deputado federal e recebeu 20,5 mil reais de uma das empresas do grupo. Mais adiante, como candidato à sucessão de Wagner, em 2014, Rui Costa recebeu 450 mil reais de três das empresas, a Unigel Plásticos, a Proquigel e a Acrinor. No mesmo ano, veio o maior aporte: 2 milhões de reais para Dilma Rousseff, pela Acrinor e pela Proquigel.
Em 2015, o Supremo Tribunal Federal proibiu doações empresariais. Henri Szlezynger colocou 50 mil reais do próprio bolso na campanha de reeleição de Rui Costa ao governo da Bahia em 2018. Foi o quinto maior doador individual ao petista naquele ano. Na última eleição, em 2022, doou 200 mil para o candidato a sucessor de Costa, o vitorioso Jerônimo Rodrigues. O empresário foi o maior doador individual da campanha de Jerônimo, com recursos próprios. Szlezynger também transferiu 100 mil para a campanha do deputado estadual Rosemberg Pinto, que, naquele mesmo ano, propôs que o governo estadual concedesse o título de cidadão baiano a Szlezynger. O industrial belga (naturalizado brasileiro) recebeu a honraria das mãos de Costa.
Ao longo desse tempo, Szlezynger fez doações também para candidatos de fora do PT, mas em valores menores, que somam 745 mil reais (ou 17% do total de contribuições). Na última eleição, em 2022, reforçou a campanha do senador Laércio Oliveira (PP-SE), defensor do negócio dos fertilizantes em Sergipe, com uma contribuição de 100 mil reais.
Henri Armand Szlezynger chegou aos 3 anos de idade ao Brasil, durante a Segunda Guerra Mundial, quando a família deixou a Antuérpia em fuga do avanço nazista. Em 1966, criou a Proquigel, a primeira empresa do grupo Unigel. Em 2022, figurou na lista de bilionários da Forbes com uma fortuna de 17,2 bilhões de reais.
A Petrobras é dona das Fábricas de Fertilizantes Nitrogenados (Fafens) em Camaçari, na Bahia, e em Laranjeiras, no Sergipe, mas havia paralisado as atividades de produção nelas em 2018, depois de consistentes prejuízos. No ano seguinte, o primeiro do governo Jair Bolsonaro, a Petrobras, sob a presidência de Roberto Castello Branco, fez um contrato de arrendamento com a Unigel, que assumiu as duas fábricas por dez anos, renováveis por outros dez. Ainda no governo Bolsonaro, a Unigel fechou contrato para comprar da Petrobras o gás natural, insumo necessário para a produção de fertilizantes. O preço do fertilizante estava em alta.
O início das operações dessas fábricas, agora denominadas Unigel Agro, deu-se em agosto de 2021. O momento foi oportuno, pois coincidiu com a escalada dos preços de amônia e ureia, com a crise energética na Europa e Ásia, e a guerra Rússia-Ucrânia. Os resultados foram espetaculares. No segmento Agro, o Ebitda (sigla que designa lucro antes dos juros, impostos, depreciação e amortização) da Unigel saltou de 134 milhões de reais em 2020 para 578 milhões de reais em 2021. “Em 2022, a Unigel atingiu resultados recordes em quase sessenta anos de história”, registrou a própria holding em sua demonstração financeira.
Em 2023, porém, o negócio começou a dar prejuízos, devido à redução dos preços dos fertilizantes no cenário internacional. O segmento agro da Unigel teve seu primeiro Ebitda negativo no segundo trimestre de 2023, no valor de 224 milhões de reais. Fabricar fertilizantes já não compensava mais.
Apesar dos dois anos de rentabilidade histórica, a Unigel vem atravessando uma crise mais ampla, com 3,9 bilhões de reais em dívidas, que agora tenta sanar com um plano de recuperação extrajudicial. Pressionada por credores, estava ameaçada de falência. Nesse cenário, recorreu a Brasília, mas tudo indica que não foi atendida. Tanto que, em 1º de novembro do ano passado, demitiu os 380 funcionários da fábrica em Camaçari. Na carta ao sindicato correspondente, a Unigel afirmou ter buscado “incontáveis vezes” a Petrobras para tentar a redução do preço do gás natural. “Até a presente data nenhum esforço foi feito pela Petrobras.” A empresa acrescentou que “buscou também o governo federal por intermédio de seus ministérios e secretarias” com o objetivo de “alcançar algum mecanismo legislativo que pudesse reduzir o preço do gás natural em patamar viável à operação da Unigel Agro BA”.
A Unigel informou também, naquela mesma carta, que propôs à Petrobras o contrato de tolling que permitiria a continuidade das operações das fábricas de fertilizantes, mas a estatal não tinha aceitado até aquele momento.
A Federação Única dos Petroleiros reagiu. “A FUP e seus sindicatos condenam a chantagem cruel e absurda da Unigel de usar a demissão dos trabalhadores como massa de manobra para atingir seus interesses econômicos e políticos”, disse a entidade, em nota. O site da Associação Dos Engenheiros da Petrobrás Núcleo Bahia saiu na mesma linha e publicou um texto com o título: “Empregos sim, chantagem não!”. A posição dos sindicatos é favorável a que a Petrobras reassuma as fábricas.
Dois dias depois de a Unigel lançar a carta em que ameaçava demissões em massa, o diretor William França, da Petrobras, solicitou uma análise de riscos considerando diferentes cenários em relação à Unigel: realizar o tolling, rescindir os contratos e retomar os ativos, e não realizar o tolling nem retomar os ativos, com um prazo de doze meses. O relatório saiu em 1º de dezembro e os dados mostravam que o tollingtraria clara desvantagem econômica para a Petrobras comparando com os outros cenários.
Então uma gerência subordinada a França pediu uma nova versão da análise de riscos, no dia 12 de dezembro, que foi elaborada em apenas dois dias, reduzindo a projeção de um cenário de doze meses para cenários de sete, oito e nove meses. A conclusão foi que, com o prazo de oito meses, o tolling se tornaria a hipótese mais favorável. A primeira das três denúncias apresentadas nos canais internos da Petrobras, protocolada em 24 de novembro, indica que esses passos se deram “mediante coação e ameaças veladas”.
A piauí mapeou as agendas públicas de autoridades do governo e da Petrobras e identificou que, de fato, os executivos da Unigel buscaram em Brasília uma solução para sua má fase. No início de março de 2023, o preço da ureia no mercado internacional descia ladeira abaixo. No dia 8 daquele mês, o vice-presidente e ministro do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços, Geraldo Alckmin, recebeu o presidente da Unigel, Roberto Noronha, e dois diretores da empresa.
O assunto oficial da reunião, registrada na agenda de Alckmin, foi “Medidas emergenciais para a produção de fertilizantes nitrogenados no Brasil”. Março foi o mês em que a cotação da tonelada de ureia em reais chegou ao patamar mais baixo desde que a Unigel começou a operar as fábricas arrendadas da Petrobras. A palavra “emergenciais” dá o tom do pedido de socorro ao governo Lula.
A conversa teve bom quórum, com representantes do Ministério de Minas e Energia, de Agricultura e Pecuária e das estatais Petrobras e Transpetro. E apenas um parlamentar, o senador Jaques Wagner (PT-BA), líder do governo no Senado, esteve presente.
Wagner tem uma história com Szlezynger bem anterior às doações de 800 mil reais que recebeu das empresas da Unigel em duas eleições seguidas. Ele tinha uma ligação quase sentimental com a companhia: depois de deixar o curso de engenharia no Rio de Janeiro durante o regime militar em razão de sua militância política, obteve seu primeiro emprego na Bahia como torneiro mecânico em uma fábrica do grupo. “Olha as coincidências da vida, a fábrica que o Jaques foi pedir emprego hoje é nossa”, disse Szlezynger sobre o “amigo” em uma entrevista ao jornal Valor Econômico , em 2022, para um perfil. O empresário contou que, em um evento da Unigel na Bahia quando Wagner era governador, subiu ao palco para discursar carregando uma ficha com seu nome, que havia encontrado no departamento de pessoal de sua empresa. “Entreguei a ficha e ele começou a chorar, fico emocionado quando conto”, disse Szlezynger na reportagem.
Em 26 de abril, foi a vez do próprio Szlezynger se reunir com Alckmin, em uma agenda sem assunto informado. Dessa vez, a reunião foi no Palácio do Planalto, no gabinete da vice-presidência da República, e teve uma hora de duração. A primeira havia sido no gabinete do ministério e se estendido por trinta minutos, segundo a agenda pública. Consultado pela piauí, o gabinete de Alckmin informou que, na condição de presidente do Conselho Nacional de Fertilizantes e Nutrição de Plantas, tratou nesta reunião sobre reorganização e atualização do Plano Nacional de Fertilizantes.
Duas semanas depois, em 11 de maio, a Unigel teve a primeira reunião no Rio de Janeiro com a cúpula da Petrobras, já então sob a presidência de Jean Paul Prates. Três líderes da Unigel – o presidente Roberto Noronha, o diretor executivo de Compras, Luiz Antonio Nitschke, e o diretor jurídico e de compliance, Murilo Garcia – se reuniram com três gestores da Petrobras: o diretor de Processos Industriais e Produtos, William França, o diretor executivo de Transição Energética e Sustentabilidade, Mauricio Tolmasquim, e o gerente executivo de Gás e Energia, Alvaro Tupiassu. Consultadas pela piauísobre o conteúdo dessa conversa, a Petrobras e a Unigel não responderam até o fechamento desta reportagem.
Em 31 de maio, o Conselho de Administração da Petrobras atualizou o texto da“visão de empresa”, que por coincidência, passou a incluir uma menção a “fertilizantes”. Nos dias seguintes, a Petrobras e a Unigel comunicaram a assinatura de um acordo de confidencialidade com o objetivo de buscar oportunidades na área de fertilizantes, em hidrogênio verde e em baixo carbono.
Em uma nova reunião em 22 de junho, as empresas passaram a discutir o tolling. Segundo as agendas públicas, participaram da reunião os diretores William França e Sergio Caetano Leite, e outros quatro gerentes da Petrobras. A Unigel foi representada pelos mesmos nomes da reunião anterior – Noronha, Nitschke e Garcia.
As agendas públicas registram mais três reuniões entre diretores da Petrobras e executivos da Unigel: em 21 de setembro no Rio, em 6 de outubro em Salvador e em 13 de dezembro outra vez no Rio. A última foi pouco antes de o negócio ser selado.
Denúncias anônimas que chegaram ao canal de denúncias da Petrobras antes mesmo de o negócio ser fechado diziam que o contrato foi gestado de maneira torta. Passavam das 23 horas na sexta-feira, 24 de novembro do ano passado, quando um funcionário protocolou, nos canais internos da empresa, um relato sobre irregularidades nas negociações. Dizia que o diretor William França havia feito “coação e ameaças veladas”, com “objetivo de forçar relatório positivo para o contrato”.
O denunciante acrescentou que foram feitas novas análises de cenário sobre o contrato, mas a conclusão continuava a ser prejudicial para a empresa. As tentativas de “forçar relatório positivo” prosseguiram, fazendo com que as análises levassem em consideração “cenários inverossímeis”. A denúncia citou, ainda, a existência de pareceres jurídicos que foram desautorizados após “intervenção gerencial do diretor”. E frisou que William França, sem conhecimento ou autorização da comissão, se reuniu com a Unigel em Salvador e firmou “ata com proposta com parâmetros prejudiciais à Petrobras”. (A agenda dos diretores França e Sergio Caetano Leite, de fato, registra no dia 6 de outubro reunião com a Unigel em Salvador).
A primeira denúncia foi enviada em novembro, no fim da semana em que a Petrobras aprovou seu Plano Estratégico 2024-2028, que trouxe como novidade a previsão de eventualmente investir em fertilizantes(a palavra já havia sido incorporada ao texto da “visão da empresa”). A menção aparece de forma breve, com a citação de “projetos em estudo”, mas não é citada uma meta de produção, nem valores a serem envolvidos, o que demonstra ser algo embrionário.
Prates, o presidente da Petrobras, teve duas reuniões com Lula no Palácio do Planalto naquela semana, acompanhado de Sérgio Caetano, um dos diretores que assinaram o contrato com a Unigel. Na primeira, na terça-feira, 21 de novembro, compareceram os ministros da Casa Civil, Rui Costa, de Minas e Energia, Alexandre Silveira, e da Fazenda, Fernando Haddad. Na segunda reunião, na quarta-feira, estavam apenas Lula, Prates e Caetano, de acordo com as agendas públicas. O Plano Estratégico 2024-2028 foi aprovado no dia seguinte.
Uma nova denúncia anônima foi protocolada no compliance da Petrobras, em 19 de dezembro, também depois do expediente, às 21h08. O relato foi breve: os diretores França, Caetano e o gerente executivo do Gabinete da Presidência, Danilo Silva, “pressionaram os times da Petrobras para fechar um contrato de tollingpara a Unigel que não tinha sinalização positiva para a Petrobras”.
O diretor de Governança e Conformidade, Mario Spinelli, iniciou então uma apuração interna, mas optou por uma abordagem mais branda. Poderia ter iniciado uma investigação forense, recolhendo equipamentos, como telefones e computadores, para analisar e-mails e mensagens de aplicativos. Também tinha a opção de determinar que o contrato passasse pela avaliação do Conselho de Administração da Petrobras, algo razoável diante do valor do contrato, de 759,2 milhões de reais, e da estimativa de prejuízos de 487,1 milhões de reais. Em vez disso, limitou-se a verificar se o contrato de tolling seguia o processo padrão aplicável a todos os contratos da empresa, como se fosse um contrato de rotina, ignorando que a negociação tinha características de uma “parceria” ou “joint venture” e envolvia aspectos estratégicos da atuação na área de fertilizantes, o que exigiria uma governança mais cuidadosa.
O acordo avançou sem maiores barreiras – mas não sem maiores ruídos. Logo chegou ao conhecimento dos auditores independentes da KPMG, que prestam serviço à empresa desde 2017. Adiantando-se a uma possível fiscalização, os gestores diretamente envolvidos na negociação com a Unigel compareceram por iniciativa própria ao Tribunal de Contas da União (TCU), em 16 de janeiro deste ano, para falar com a área técnica atuante no setor de óleo e gás.
Os auditores do TCU examinaram o contrato e em poucos dias levantaram uma série de problemas que consideraram graves. Basicamente, achavam que o negócio não fazia sentido e que os riscos listados não eram factíveis. Lembravam que o contrato da Petrobras com a Unigel protege a estatal ao estabelecer multa caso a empresa privada devolva as fábricas.
Além disso, o tolling é uma solução temporária, de oito meses, para a inviabilidade de a Unigel tocar a fabricação de fertilizantes. Passado esse prazo, se o preço dos fertilizantes não subir, a Unigel voltará a ser dependente de novos acordos semelhantes.
Os auditores também chamaram a atenção para os riscos de reforçar a parceria com uma empresa sob risco de falir. Pouco antes da celebração do negócio, em novembro, a classificação de crédito da Unigel foi rebaixada pela Standard & Poors para o nível D, o pior de sua escala, após o não pagamento de juros vencidos. A Fitch Ratings também rebaixou a nota de crédito para o nível RD, o pior nível de risco de sua escala.
O relatório do TCU registra ainda que a Unigel deve à Petrobras 90 milhões de reais, valores relacionados ao contrato de compra de gás para fabricar fertilizantes. O valor do arrendamento segue sendo pago em dia.
O bate-boca no Comitê de Auditoria da Petrobras tinha também um pano de fundo de política interna. Era o ápice da disputa por poder entre os grupos do atual presidente da companhia, Jean Paul Prates (que renunciou ao cargo de senador do PT-RN em janeiro de 2023 para assumir o posto), e o ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira (PSD-MG), que tem influência na estatal.
Prates conta com a maioria dos diretores, e Silveira, a maioria dos membros do Conselho de Administração e dos integrantes dos comitês da estatal, que servem para apoiar a diretoria e o Conselho. Portanto, não era uma conversa neutra, mas um embate de homens em campos opostos: Veras (indicado do ministro) e os dois diretores (indicados aos seus cargos pelo presidente da estatal).
Nas suspeitas sobre o contrato com a Unigel, a turma de Silveira farejou uma oportunidade de fragilizar o grupo adversário e ampliar a própria influência sobre a Petrobras, que elegerá os novos representantes do Conselho de Administração e do Conselho Fiscal em 27 de abril.
Dois dias depois da querela no Comitê de Auditoria, Prates reuniu-se com Rui Costa no Palácio do Planalto. Levou com ele parte de sua equipe, incluindo o diretor Sergio Caetano (que, aliás, já trabalhou no Consórcio do Nordeste, formado por governadores dos estados nordestinos, à época presidido por Costa, e se reportava diretamente ao secretário executivo Carlos Gabas, ex-ministro no governo Dilma Rousseff).
Segundo uma fonte que acompanhou as discussões do contrato da Unigel na estatal, Prates disse a Costa que havia gente ligada a Silveira alarmando os auditores independentes, colocando em risco o negócio com a Unigel.
Naquele momento, as denúncias anônimas nos canais da Petrobras já não eram duas, mas três. A última fora protocolada pouco antes do Carnaval, no dia 3 de fevereiro. Segundo a acusação, entre novembro e dezembro, o diretor William França pediu a gerentes de refinarias que convencessem os sindicatos petroleiros a emitir “uma carta sobre uma ameaça de greve”, “para justificar a assinatura de um contrato com a Unigel”. As cartas, segundo a denúncia, foram enviadas para a Petrobras conforme combinação. A gestão da estatal nega todas as denúncias.
O clima tenso se estendeu pelas semanas seguintes. Os auditores da KPMG propuseram fazer uma “shadow investigation”. Ou seja: em vez de investigarem diretamente o caso, eles acompanhariam a investigação da Diretoria de Governança e Conformidade da Petrobras.
A situação ainda tinha uma camada extra de tensão: faltavam poucos dias para a divulgação do Relatório de Administração da Petrobras de 2023, que traz o resultado financeiro da empresa, marcado para o início de março. E a KPMG não estava disposta a validar as contas sem que se chegasse a uma conclusão sobre as denúncias internas de coação de funcionários. As suspeitas que pairavam no ar, portanto, colocavam em risco a aprovação do primeiro relatório anual da Petrobras desde a volta do PT ao poder.
Dessa vez, Mário Spinelli, o diretor de Governança e Compliance, teve de abrir a caixa de ferramentas. No dia 29 de fevereiro, o pessoal do setor coletou os celulares de William França e Sergio Caetano pela manhã. Copiaram os materiais que puderam e devolveram os aparelhos à noite.
A conclusão do compliance, seis dias depois da coleta dos celulares, é de que não houve coação. A KPMG aprovou o relatório anual da estatal. Mas falta ainda convencer o TCU.
Jean Paul Prates, William França e Sergio Caetano Leite estavam em viagem de trabalho em Abu Dhabi, nos Emirados Árabes Unidos, quando, em 16 de fevereiro, à meia-noite no horário de lá, iniciaram uma videochamada com o ministro Benjamin Zymler, do TCU.
Segundo um participante da conversa, Prates explicou a importância estratégica do setor, especialmente em um cenário pós-pandemia, onde a dependência de outros países por produtos essenciais se mostrou um risco. Disse que a entrada no mercado de fertilizantes é parte de um plano de transição energética. Os gestores da Petrobras disseram ao ministro que a fabricação de fertilizantes é uma oportunidade de mercado, não apenas por obrigação ou interesse nacional, mas como um negócio viável. Como exemplos de empresas que estão investindo no setor, citaram a Yara International, empresa privada cujo maior acionista é o governo norueguês, e a EuroChem, companhia do magnata russo Andrey Melnichenko sediada na Suíça.
Em manifestação de 18 de março, o chefe da auditoria do setor de óleo e gás (AudPetróleo) no TCU, Marcelo Rodrigues Alho, apontou para um possível desvio de padrões de governança, sugerindo que o contrato de tolling foi enquadrado de forma inadequada, sem passar pelos ritos rigorosos de governança exigidos para parcerias estratégicas.
Enquanto o presidente da Petrobras buscou convencer o relator da legalidade e benefícios do projeto de fertilizantes, o auditor – que não foi informado do conteúdo da conversa entre o dirigente da estatal e o relator do tribunal –afirma que “há indícios de graves irregularidades”.
“O desvio a padrões de governança, também chamado de management override, pode ocorrer de duas maneiras: quando se dribla intencionalmente uma estrutura de governança mais rígida ou pelo transcurso meramente formal das instâncias de controle envolvidas, que apresentam posicionamentos frágeis e superficiais, apenas no sentido de justificar uma escolha ou uma decisão já tomada. No caso em que se analisa, parece ter ocorrido as duas situações”, escreveu o auditor em despacho revelado pelo blog da jornalista Malu Gaspar no jornal O Globo.
Segundo ele, o contrato de tolling foi apresentado como se fosse uma simples prestação de serviços, quando na verdade fazia parte de uma parceria comercial mais complexa, e por isso deveria ter sido avaliado por outras instâncias além da diretoria de William França.
“Não se está a afirmar que se esteja diante de um caso de fraude, mas em face de tamanha fragilidade das justificativas apresentadas para o indigitado contrato de tolling, há de se averiguar o que de fato tem motivado a Petrobras a defender quase que ilogicamente um contrato com uma empresa em recuperação extrajudicial e devedora de quase 90 milhões de reais à companhia, cujo resultado tende a ser um prejuízo econômico de quase meio bilhão de reais”, escreveu o auditor chefe. “Definitivamente não é uma atitude que inspira confiança de que a gestão corporativa persegue a disciplina de capital propugnada em seus planos estratégicos. É preciso investigar.”
O passado recente da Petrobras mostra prejuízos com os fertilizantes. Somente no período de 2013 a 2017, segundo lembraram auditores do TCU, as fábricas na Bahia e em Sergipe geraram prejuízos operacionais de 1,215 bilhão de reais em valores nominais não atualizados. Agora é a própria Unigel que vem tendo prejuízo. Prossegue o relatório: “Retornar ao segmento de fertilizantes com expectativa de perdas iniciais de 487 milhões de reais apenas no prazo de oito meses, contratando empresa em estado econômico-financeiro crítico, e assumindo os riscos do negócio em momento mercadológico sabidamente desfavorável, não faz sentido empresarial, lógico ou econômico”.
A manifestação dos auditores do TCU, no dia 27 de março, aponta que as respostas dadas até agora pela Petrobras são insuficientes. Eles reiteram o pedido para suspender o contrato “ante os elevados riscos de ilegalidade e configuração dos danos decorrentes do início da operacionalização do contrato e dificuldades adicionais de sua anulação após sua ativação.”
No despacho mais recente, da noite da última quinta-feira, 4 de abril, o relator do processo no TCU, o ministro Benjamin Zymler, solicitou à Petrobras uma nova análise econômica sobre os diferentes cenários e seus desdobramentos (inclusive os resultantes de eventuais litígios), e mostrou preocupação com a situação financeira da Unigel.
O despacho do relator informa também que a Proquigel iniciou uma arbitragem contra a Petrobras para discutir os pagamentos pelo gás natural, relacionados ao contrato de compra feito à época do arrendamento das fábricas em Sergipe e na Bahia. Representantes da Unigel estiveram no TCU no dia 1º de abril e explicaram que já conseguiram uma liminar na Justiça para que a Petrobras não executasse as garantias de pagamento, devido à inadimplência de 90 milhões de reais.
Em nota enviada à piauí, a assessoria de imprensa da Petrobras diz que a empresa está focada “na produção de fertilizantes com olhar para o futuro, avaliando a competitividade do negócio, a necessidade dos clientes e a descarbonização”.
A respeito do rombo de meio bilhão de reais previsto no acordo com a Unigel, afirma que “o valor do contrato está dentro do limite de aprovação do responsável pela área e passou por todas as instâncias prévias de anuência e validação. Portanto, o sistema de governança foi integralmente respeitado”.
A empresa afirma também que vem municiando o TCU com as informações necessárias, que as denúncias foram “minuciosamente apuradas pela equipe técnica da Diretoria de Governança e Conformidade da Petrobras, sendo utilizados todos os procedimentos disponíveis e técnicas necessárias à averiguação dos fatos” e que “essa apuração foi integralmente acompanhada em tempo real pela KPMG, que realizou testes adicionais e examinou procedimentos e controles aplicáveis a todo o processo nos termos das normas aplicáveis à matéria”.
O Ministério de Minas e Energia disse que os questionamentos sobre o tolling devem ser feitos diretamente à Petrobras.
A Unigel enviou por e-mail respostas aos questionamentos da piauí assinadas pelo diretor-presidente Roberto Noronha. Ele afirmou que a iniciativa desse acordo partiu da estatal. “O contrato de tolling foi criado pela Petrobras e representa uma alternativa temporária para viabilizar a manutenção da operação das plantas de fertilizantes nitrogenados, por conseguinte, manter a sua contribuição relevante na produção nacional.” Ao mesmo tempo, ressaltou a importância do acordo para a saúde da empresa, que está em recuperação extrajudicial. “A recuperação extrajudicial e o contrato de tollingsão iniciativas independentes e têm o objetivo de manter a competitividade da empresa no mercado, que vem enfrentando um dos piores ciclos vividos pela indústria petroquímica dos últimos anos.” Insistiu, porém, que busca outra solução junto ao Planalto: “A Unigel segue acreditando na sensibilização do Governo Federal, através dos poderes executivo e legislativo, dos governos estaduais e da Petrobras quanto às políticas de preço do gás natural destinado à indústria nacional, que se encontra em grande parte combalida pela falta de competitividade gerada pelo alto custo dessa matéria-prima.”
Noronha afirmou também que as doações da empresa e de seu fundador a candidatos sempre respeitaram as leis e não tiveram qualquer interesse em contrapartida. Sobre as investigações internas da Petrobras, disse:
“A Unigel, como usual neste tipo de negociação, não participou ou teve acesso às análises de viabilidade interna da Petrobras ou aos procedimentos de governança da estatal, e vem suportando os resultados negativos da operação desde fevereiro de 2023 por acreditar ser possível construir uma alternativa viável e integrada para a fabricação e comercialização de fertilizantes nitrogenados a partir das plantas que opera por meio do atual arrendamento junto à Petrobras.”
A piauí enviou onze perguntas por e-mail na segunda-feira ao ministro da Casa Civil, Rui Costa. Na quarta-feira, a assessoria de imprensa respondeu que não haverá manifestação. Jacques Wagner também não respondeu o contato da reportagem.