17º00’S, 49º50’L
Cemitério pirata de São Pedro
Nosy Boraha, Toamasina, Madagascar
Em 1728, uma nova edição da “História Geral dos Piratas”, espécie de almanaque com biografias e outras informações relevantes sobre os principais bucaneiros, corsários e afins, citou a existência de Libertátia. Era um país fundado por um pirata chamado Capitão Misson.
Francês radicado em Roma, Misson se desencantou com a Igreja e as amarras da vida em sociedade. Ao lado de outros 200 comparsas, se lançou à pirataria e fundou esse país libertário — antimonarquias, antirreligiões, antiqualquer instituição, como toda boa ideologia “contra isso tudo que tá aí” – em algum ponto de Madagascar.
Acontece que jamais outra fonte confiável citou o caso. Nenhum historiador descobriu qualquer evidência. Libertátia, ou Libertália, como também é chamada, caiu na gaveta das utopias. Ficou ruim até para o autor da “História Geral”, Capitão Charles Johnson, que deixou de ser uma fonte 100% confiável para alguns pesquisadores modernos que estudam a era de ouro dos piratas.
Registro da ilha feito no século 19Imagem: duncan1890/Getty Images/iStockphoto
Para quem não precisa se apegar a fatos, Libertátia desde então povoa variados tipos de ficção, da obra do escritor William Burroughs ao enredo de “Uncharted IV”, um dos melhores jogos de videogame da década passada. Mas por que sua existência está vinculada a Madagascar e não a uma ilha do Caribe, tão mais familiar às mitologias piratas?
Os europeus chegaram à grande ilha do Índico no século 16, com os portugueses, em 1506. Mas não houve colonização. Navegadores holandeses, ingleses e franceses apareceram na sequência, mas apenas para fazer comércio. Depois, chegaram os piratas, que estabeleceram portos seguros no nordeste de Madagascar, nas localidades de Antongil, Foulpointe e a Ilha de Sainte-Marie.
De origens sociais diversas, mas falando predominantemente inglês, esses piratas estavam estrategicamente posicionados, monitorando (e pilhando) os navios que voltavam da Ásia. Eles forjaram alianças estratégicas com povos locais, em especial os betsimissaracas, que habitam a costa nordeste e hoje são uma das principais minorias do país.
A descoberta, no começo deste século, de um navio naufragado em Sainte-Marie ajudou os arqueólogos a confirmarem que, em 1720, mais de 135 piratas e cerca de 80 escravizados da Guiné viviam na ilha. A prova mais conhecida, e a maior atração local, é o cemitério de piratas de Sainte-Marie.
Cemitério de piratas em Saint MarieImagem: JialiangGao/WikiCommons
Sainte-Marie resgatou seu antigo nome e hoje se chama Nosy Boraha. É uma ilha de 222 quilômetros quadrados, pouco maior que a Ilha Grande, no Rio de Janeiro. A principal aglomeração urbana é Ambodifotatra, ao norte de uma baía que tem, bem no meio, uma ilhota chamada Île aux Forbans, ou ilha pirata.
Segundo o site francês “Archéologie de la Piraterie”, a baía de Ambodifotrata foi um covil de piratas entre 1690 e 1730 e provavelmente o maior foco de pirataria do Oceano Índico. Do outro lado da baía, fica o cemitério, com cerca de 30 lápides, algumas marcadas com símbolo da caveira dos ossos cruzados.
Ou seja, é fato que o nordeste de Madagascar, em especial Nosy Boraha, atraía piratas como cafés e lanchonetes gourmet atraem aluguéis mais caros. Mas isso não quer dizer que a Île aux Forbans era Libertátia. Nenhuma ossada jamais foi identificada e ainda se sabe muito pouco sobre os homens que viveram ali, naquela época, naquelas condições. Era, até onde se sabe, uma comunidade de piratas. E só.
Eles foram embora em algum momento da primeira metade do século 18. Os franceses eventualmente tomaram o controle da ilha em caráter oficial, bem como de toda Madagascar, que só conquistaria a independência em 1960.
Praia de Saint Marie, em MadgascarImagem: Charles-Henry Thoquenne/Getty Images/iStockphoto
Hoje, Madagascar está em alta no turismo. Uma consultoria espanhola colocou o país entre os três melhores destinos para a África este ano. Nosy Boraha foi eleita o melhor destino do continente, e o site americano “Travel Lemming” a listou como o quarto melhor lugar do mundo para visitar em 2023.
A publicação destacou as atividades ao ar livre, como trilha, escalada e ciclismo. “É uma ótima escapada para praias. Imagine bangalôs de madeira, a água turquesa do Índico beijando sua porta, sol, coquetéis servidos em cocos e a deliciosa cozinha madagascarense.” ((https://travellemming.com/best-places-to-travel-2023/))
Ou seja, o cemitério é só mais um atrativo. A ilha também tem a primeira igreja católica de Madagascar e algumas piscinas naturais. Para completar, em um país conhecido mundialmente por sua biodiversidade única, Nosy Boraha tem diversas espécies de lêmures e de orquídeas.
Mas isso tudo está ameaçado. E não, os piratas não estão voltando.Os míticos baobás, as árvores que os deuses plantaram de cabeça para baixo, por causa da disposição singular de suas copas, são bastante vulneráveis ao aquecimento global. Para piorar, o baobá é considerado uma espécie-chave, cujo impacto no ecossistema é enorme para outras formas de vida. Quando um baobá morre, muitas espécies de plantas e animais correm risco.
O baobá não é exclusividade de Madagascar. Mas, das sete espécies presentes no país, seis são endêmicas. Em toda a África continental, só existe um tipo de baobá.
O problema é que Madagascar é um dos países mais pobres do mundo. Muitos agricultores, desesperados em busca de mais terra arável, aceleraram o desmatamento nas últimas décadas. Em anos recentes, secas e enchentes recordes atacaram a ilha, mais uma vítima do aumento de eventos extremos causados pelas mudanças climáticas.
Diante disso, cientistas já sugeriram até uma migração de baobás. Levar as árvores para ambientes menos quentes pode salvá-las. Outros estão estocando o DNA da espécie, para evitar seu desaparecimento total.
Um turismo responsável e equilibrado pode ajudar o país a ter mais recursos e evitar o pior. Seria uma tragédia se a fauna e a flora locais se tornassem algo tão fictício quanto o rei Julien de “Madagascar” (o filme). Ou Libertátia.
Informações Nossa UOL