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Foto: Paula Fróes/ Correio

Os clientes sumiram e a noite está vazia. O prazer de uma cidade boêmia se congelou numa madrugada de maresia fria e sem tesão. A equipe do CORREIO ouviu pelo menos 14 profissionais do sexo durante duas noites pela orla de uma Salvador adormecida pela pandemia. Nem todas quiseram gravar entrevista ou tirar foto, mas não deixaram de contar suas histórias e como sobrevivem em tempos de coronavírus. Explicaram como tentam minimizar o risco de pegar a covid-19, apesar do medo da fome ser bem maior do que da doença que já matou mais de 320 mil pessoas no país. De todas as garotas, apenas uma usou a máscara o tempo todo. Comem o que levam em suas bolsas e só podem voltar para casa quando o sol nasce e os ônibus voltam a circular. Durante a reportagem, nenhuma foi abordada pela polícia ou fiscais da prefeitura, mas os jornalistas sim. Depois de apresentarmos o crachá, fomos liberados. Ser profissional do sexo não é crime, mas é condenada moralmente há séculos. É, inclusive, uma grata coincidência que esta reportagem seja publicada no encerramento da Semana Santa. O ápice da Páscoa é a ressurreição de Cristo, que escolheu aparecer primeiro justamente para Maria Madalena, tida por muitos anos como uma prostituta. Antes de iniciar a matéria, lembre-se: Quem não tem pecado, que atire a primeira pedra.
Moysés Suzart e Paula Fróes

Pastoras da noite

De vestidinho vermelho com a estampa do Mickey, Raquel se encosta num poste e acende um cigarro na orla de Salvador. Ela apenas observa as ruas se esvaziando por conta do lockdown parcial. Há pouco mais de um ano, mal conseguia terminar suas tragadas de tantos clientes à sua procura. Como uma pastora da noite, conduzia a madrugada de uma cidade que não sabia dormir cedo. 

Garota de programa, Raquel ganhava mimos, dinheiro, juras de amor. Era comum faturar R$ 500, antes mesmo do sol nascer. Hoje, com a capital precisando adormecer cedo para evitar o aumento de casos da covid-19, o dinheiro ganho num dia mal dá para comprar um maço de cigarro. Como oferecer prazer em tempos de distanciamento social? Nas ruas de Salvador, profissionais do sexo convivem com a falta de clientes e  o risco diário de pegar o coronavírus.

“Já estou há quatro horas aqui e não fiz nenhum programa. Está assim quase todos os dias, nem me preocupo com a contaminação da covid-19, pois não tem cliente. Gasto minha beleza pra nada”, disse Raquel, que trabalha ao lado do marido Val, vendedor ambulante de bebidas  durante a madrugada da orla.

Em 2020, Raquel conseguiu o auxílio emergencial, o que ajudou nas despesas durante a pandemia. Apesar da profissão não ser regulamentada, é reconhecida como ocupação pelo Ministério do Trabalho e Emprego, desde 2002. Contudo, nem todas conseguiram. “Que auxílio emergencial? Umas conseguiram, outras não. Eu não consegui. Gasto dinheiro com aluguel, fico linda e, quando finalmente aparece um cliente, me oferece R$ 20 pelo programa. Não vou. Estou custando menos que uma carne do sol? Já estou pensando em voltar para Recife”, disse a pernambucana Agata, amiga de Raquel. “Meu trabalho diminuiu 90%. Antes da pandemia, não ficava 15 minutos parada aqui”, lembra.

Riscos e fome
Segundo dados da Associação das Prostitutas da Bahia (Aprosba), até o final de 2019 Salvador possuía 820 prostitutas cadastradas, sem contar mulheres trans, como Raquel e Agata. Entre elas, quem mais sofre são as que trabalham nas ruas e becos da cidade, o que atinge 85% da classe.

Sem clientes, algumas passam fome. A Aprosba atende todos os dias garotas de programa sem dinheiro para comer ou sustentar os filhos. “Está muito triste. Meu telefone não para de receber ligações de prostitutas precisando comer ou pagar conta. Ajudamos com cestas básicas e auxiliamos, principalmente em 2020, com o cadastramento do auxilio emergencial. Algumas conseguiram, outras não. Muitas nem possuem CPF”, disse a coordenadora da Aprosba, Fátima Medeiros. 

Desde a última quarta-feira (31), a Aprosba resolveu parar, assim como outras associações, como a de Minas Gerais. Uma espécie de greve para que estado e prefeitura reconheçam profissionais do sexo como grupo com alta vulnerabilidade nesta pandemia, além de serem inseridas na vacinação contra a covid-19.  Contudo, das mulheres que conversaram com o CORREIO, nenhuma aderiu à greve. “Não posso, preciso comer”, disse a garota de programa Luana.

Há 10 anos, Luana se apaixonou, saiu da prostituição, casou e teve três filhos. O final deixou de ser feliz em dezembro de 2020, quando o marido levou uma facada numa briga, foi dar queixa, mas ele próprio acabou sendo preso. Havia um mandado de prisão em seu nome. Marido detido, pandemia, desemprego e três filhos para alimentar. Luana não teve outra saída. “Tentei vender salgado, mas voltava com R$ 10. Meus filhos não tinham mais leite pra beber em casa. Luz cortada, geladeira vazia. Voltei a fazer vida no meio da pandemia. Um sexo oral é mais dinheiro que um dia todo vendendo salgado”.
 
De volta às ruas, Luana se diz assustada com o risco de contrair covid-19. Para minimizar o perigo, ela criou seus próprios protocolos, com uma exigência: sem beijo na boca. “Me apavoro todo dia com o risco de morrer de covid e deixar meus filhos. Assim que entro no carro do cliente,  higienizo as mãos dele com meu álcool em gel. Como eu preciso tirar minha máscara para fazer oral, ele precisa estar o tempo todo com a dele no rosto”, explica. Segundo ela, a tática está dando certo. “Ainda não peguei”, frisa.

Dentro da realidade imposta pela profissão, alguns cuidados são importantes, como prega a Aprosba. Higienizar o local da relação é a primeira medida. Sobre as posições sexuais, vale algumas que evitam o contato face a face. Ter uma muda de roupa para fazer a troca a cada programa também minimiza os riscos. Contudo, o mais importante é evitar o beijo na boca. Como a doença é transmitida pelas vias respiratórias, a máscara se tornou uma espécie de preservativo contra o coronavírus. O problema é que nem todo mundo quer usar. 

Foto: Paula Fróes/CORREIO

“Se o cliente pede para eu beijar, não vou beijar? Claro que vou. Faço tudo, amor. Antes da pandemia, conseguia até R$ 200 por cliente. Hoje com lockdown, depois das 20h quase não passa mais carro aqui na rua e estou aceitando até R$ 100. Se não fizer o que o cliente quer, fico sem trabalhar, morro de fome. Tento me cuidar, evitar beijo na boca, transar de costas, mas se eles pedem, se faz parte do fetiche deles, vou fazer e rezar depois. Preciso comer, pagar aluguel e comprar as coisas que gosto”, disse Bruna, trans de 20 anos, que conversou com o CORREIO despida de máscara e exibindo, com orgulho, os seios volumosos.

Coordenadora do Grupo Gay da Bahia (GGB), a trans Millena Passos assegurou que o momento é crítico para mulheres trans. “Uma prostituta trans que passa dos 35 anos é uma vitoriosa. Poucas chegam a esta idade. Com a pandemia, temo que as coisas fiquem piores.  Elas tentam se cuidar, mas é muito difícil. Se não trabalhar, não come. É desolador”, conta Millena. Na última pesquisa do GGB, realizada em 2019, 329 LGBT+ foram vítimas de morte violenta no país, só naquele ano. As profissionais do sexo foram as que mais morreram entre as ocupações: 11,5%. Ainda não foi feita uma pesquisa sobre trans vítimas de covid-19. “Aquela que não pegou covid-19, é porque não está atendendo”, disse Millena.

Garoto de programa, Rafael Zickman fazia inúmeras viagens para participar de festas e programas pelo Brasil. Seu nome era requisitado. Com a pandemia, os trabalhos sumiram. Agora, tenta complementar a renda como motorista de aplicativo. Ele pegou covid-19 em agosto do ano passado. “Rodo Uber para poder me adaptar financeiramente e faço alguns eventos como Stripper, mesmo com esse lockdown. A clientela está com muito medo! Principalmente o público alvo, que são as pessoas mais velhas, entre 35 e 60 anos. Usar máscaras no ato do sexo pode prejudicar nosso trabalho, ninguém quer nada mecânico”, disse Rafael, de 23 anos.

Outra barreira é o toque de recolher. Mesmo com o decreto, elas burlam a fiscalização. “Não dá pra obedecer ao toque de recolher. Quando o chocolate passa (viatura da Rondesp), corremos, entramos nos becos e ficamos escondidas. Tenho um filho e ele não pode passar fome. Preciso me arriscar para ele comer”, disse Carol, de 25 anos. 

Foto: Paula Fróes/CORREIO

Sexo virtual
Para evitar a pandemia e continuar trabalhando, algumas garotas de programa migraram para o mundo virtual.  Entre sites especializados e plataformas, o queridinho do momento é o OnlyFans. O mecanismo é simples. O usuário paga para ter acesso a conteúdos exclusivos da pessoa, incluindo os eróticos. O site fica com 20% do lucro.

“Me reinventei. Uma solução foi monetizar o nudes. A gourmetização sexual chegou neste formato de conteúdo sexual, igualzinho a uma acompanhante, só que virtual. Com a chegada do Pix e a pandemia, a busca por conteúdo erótico virtual cresceu muito, até mesmo pelo próprio site de acompanhantes.  Onlyfans está na moda. Prefiro fazer chamada de vídeo pelo Zap. Não precisa sair de casa, é só  receber o pix e ligar a câmera. É uma forma de evitar a covid, né? ”, disse Taíse, de 20 anos.

A profissão mais antiga do mundo não possui regulamentação no Brasil. Prostitutas não têm direitos trabalhistas, sequer podem sonhar com aposentadoria. No Brasil, apenas dois projetos de lei foram feitos para regulamentar a profissão, incluindo a do ex-deputado Jean Willys, em 2012. Nunca foram votadas. Se serve de alento, nenhuma das Pastoras da Noite  desta reportagem teve covid-19, segundo as próprias. Elas permanecem sobrevivendo. “Um coração noturno com gritos de súplica, uma pena de amor, gosto de fome nas bocas de silêncio”, como escreveu Jorge Amado no clássico Pastores da Noite, lançado em 1964 (e que virou filme em 1977).

Informações Correio

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