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Samantha Lopez/ Netflix

Da mesma forma que não existe crime perfeito, criminosos nunca são iguais uns aos outros. Por mais que se cerquem de métodos semelhantes a fim de alcançar seus execráveis objetivos, golpistas de toda ordem, estelionatários, ladrões ou assassinos seriais — todos psicopatas em maior ou menor grau —, sempre fazem questão de manifestar em seu comportamento bestial uma característica qualquer que os difira dos outros, como uma impressão digital, e é a partir daí que policiais bem-preparados, ciosos de seu ofício, iniciam suas intrincadas averiguações, logo tornadas um jogo de gato e rato onde as aparências estão sempre muito perto do engano, a verdade se irmana com a mentira, vilões passam por mocinhos sem inspirar muita desconfiança e o caos é o déspota das ledas intenções do gênero humano, imperando sobre a lei e a ordem. Nesta conjuntura em que o homem é o lobo do homem, a vida mais parece uma caçada, cruenta e irracional, em que estamos todos condenados a sofrer nas mãos uns dos outros, sem saber quem é o grande predador.

Em Vitoria-Gasteiz, lugarejo bucólico da província de Álava, no País Basco, um maníaco ganha fama ao passo que intriga a polícia e aterroriza a população local. Aquele recanto antes aprazível no extremo norte da Espanha começa a padecer com as especulações da imprensa marrom, é forçado a renunciar a seu cotidiano de sossego e mergulha na atmosfera noir buscada por Daniel Calparsoro em “O Silêncio da Cidade Branca” (2019), thriller policial confuso e movimentado. Com base no título em inglês, “Twin Murders: The Silence of the White City” se poderia afirmar de imediato que o vilão da história contasse com o resguardo de uma possível dupla identidade na figura de um irmão gêmeo ou de um doppelgänger, um sósia involuntário, mas Alfred Pérez Fargas e Roger Danès declinam de tal facilidade em seu roteiro. Seu antagonista, um homem espantosamente habilidoso, ronda seus perseguidores sem se deixar descobrir enquanto se diverte com levando a termo um método sofisticadamente perverso de dar cabo de suas vítimas.

Unai, o detetive vivido por Javier Rey, abre a trama muito empenhado em desmascarar o facínora, celebrizado nos programas que se debruçam sobre os bastidores do mundo cão por usar de requintes de uma crueldade muito específica. Também conhecido como Kraken, Unai, subordinado direto da comissária Alba, de Belén Rueda, começa a ter algum sucesso em suas averiguações, dispondo da ajuda colateral do avô apicultor interpretado por Ramón Barea, mas parece estar sempre alguns passos atrás da genialidade do criminoso. Numa guinada um tanto afoita do texto de Fargas e Danès, fica-se sabendo que o autor dos homicídios é Mario, o tipo acima de qualquer suspeita de Manolo Solo, e de quase nada vale o périplo de Kraken ao presídio onde Tasio cumpre pena. Injustamente condenado como responsável pelas mortes, o personagem de Àlex Brendemühl presta um depoimento informal rico em detalhes e considerações sobre a história basca — suas analogias à invasão moura da Península Ibérica, em 19 de julho de 711; a reconquista católica, entre 718 e 1492, igualmente belicosa; bem como a referência a “Os Sofrimentos do Jovem Werther” (1774), do alemão Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832) dão uma pista do risco a que o policial e sua colega Estíbaliz, de Aura Garrido, estão sujeitos. Nesse momento, a escalada de tensão da narrativa sobe de nível e o filme entra numa segunda parte muito mais sombria. 

Calparsoro sustenta a atmosfera macabra do romance homônimo de Eva García Sáenz de Urturi, de que tirou a essência de seu filme, fazendo com que Kraken, cada vez mais vulnerável, e Mario troquem de lugar. Gênio do mal, o assassino, que mantém um caso com Alba, tem um quê de Hannibal Lecter, mas consegue ser ainda mais sádico que o vilão eternizado por Anthony Hopkins em “O Silêncio dos Inocentes” (1991), de Jonathan Demme, ao se imiscuir nos ambientes em que ninguém esperaria achá-lo. Um trabalho de Hércules frente à exuberância da arquitetura dos prédios, valorizada pela ótima fotografia de Josu Inchaustegui.

“O Silêncio da Cidade Branca” flerta desabridamente com o caos, mas sabe tornar ao leito quando preciso, inclusive ao se fixar na psicopatia do assassino, um esteta da morte. Em mais um filme de que a adrenalina extravasa, Calparsoro se mostra um operário incansável, como a abelha em busca do néctar mais oloroso com que vai fabricar o mel mais doce. Aqui, no entanto, a amargura humana é o que sobressai.


Filme: O Silêncio da Cidade Branca
Direção: Daniel Calparsoro
Ano: 2019
Gêneros: Suspense/Mistério
Nota: 8/10

Informações Revista Bula

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