Em texto publicado no “The Conversation”, especialista em evolução microbiana detalha o que se sabe sobre variante brasileira, sul-africana e britânica do novo coronavírus
Revista Galileu- Quando o suprimento de oxigênio nos hospitais de Manaus, no Brasil, acabou recentemente, a força aérea foi chamada para evacuações de emergência enquanto os profissionais de saúde tentavam freneticamente salvar vidas com ventilação manual. Para aqueles que não puderam ser salvos, havia apenas morfina e um aperto de mão final.
Por mais calamitosa que seja a situação para os afetados, o aumento devastador de casos de Covid-19 em Manaus nas últimas semanas fez soar o alarme cada vez mais alto para governos e agências em todo o mundo que lutam para controlar a pandemia. Os casos continuam a aumentar no Reino Unido e na África do Sul e, como em Manaus, parecem ser principalmente devido ao surgimento de novas variantes do coronavírus.
Três variantes causando preocupação
A denominação dessas “variantes de interesse”, como os cientistas as chamam, é um tanto confusa. Para simplificar, elas serão chamadas aqui de variantes brasileira, sul-africana e britânica. Todas surgiram recentemente e todas sofreram várias mutações que marcam uma mudança distinta na evolução do vírus. Variantes semelhantes estão quase certamente espalhadas por aí. É provável que mais evoluam.
Apesar de surgirem independentemente em três continentes diferentes, as três variantes compartilham semelhanças impressionantes. Cada um sofreu várias mutações em um curto período de tempo, com muitas no gene que fornece as instruções para a produção da proteína spike do Sars-CoV-2.
A proteína spike é onde as principais batalhas entre humanos e vírus estão sendo travadas, incluindo as vacinas. É a chave de como o patógeno interage com o corpo humano, tanto em relação à resposta imune quanto na ligação e entrada nas células das vias aéreas humanas.
Não apenas várias mutações afetaram essa proteína, mas mutações idênticas surgiram independentemente tanto nas variantes de interesse quanto em outras linhagens virais. Na verdade, o vírus “tropeçou” repetidamente nas mesmas soluções evolutivas para desafios específicos. Esse fenômeno é conhecido como convergência evolutiva – um exemplo é a evolução independente de asas em morcegos, pássaros e insetos.
É difícil entender como essas mutações podem afetar o comportamento do novo coronavírus em nível molecular. O trabalho para preencher a lacuna entre o “genótipo” de cada variante (as mutações) e seu “fenótipo” (a rapidez com que se espalha) está sendo acelerado no Reino Unido e em outros lugares, mas exigirá um grande esforço multidisciplinar.
Constelações de mutações
A tarefa se torna mais difícil porque várias mutações se acumularam nessas variantes (as chamadas constelações). A variante do Reino Unido, por exemplo, tem 23 mutações separadas, representando um salto evolutivo notável, sem variantes intermediárias conhecidas, como se houvessem “elos perdidos” na cadeia evolutiva.
Embora nem todas as mutações sejam consideradas importantes, o efeito de qualquer mudança individual pode ser alterada pela presença de outras mutações (um efeito chamado epistasia). Isso complica muito os problemas que são descobrir precisamente o que essas alterações fazem e avaliar o risco de novas variantes emergentes apenas a partir dos dados de sequenciamento genético.
Apesar dessas complexidades, uma combinação de análise computacional e experimentos de laboratório rendeu evidências valiosas do efeito dessas mutações. Por exemplo, uma mudança encontrada nas três variantes é a N501Y. O nome se refere a uma alteração na proteína spike, onde o tipo de molécula de aminoácido localizada na posição 501 mudou de asparagina (N) para tirosina (Y).
A posição 501 está no local em que o vírus se liga ao receptor celular (parte da proteína spike se une a um receptor específico (ACE2) nas células do corpo humano) e essa mudança parece fortalecer a ligação entre o patógeno e as células humanas. No entanto, por razões que permanecem obscuras, o efeito da N501Y é muito amplificado quando combinado com outras mutações.
Outras mudanças na proteína spike oferecem ao Sars-CoV-2 alguma proteção contra a resposta imune. Os exemplos incluem a E484K (encontrado nas variantes brasileiras e sul-africanas, mas não na variante do Reino Unido) e uma mutação na variante do Reino Unido em que dois aminoácidos são deletados (del69-70), que é repetidamente encontrada em conjunto com mutações no domínio de ligação ao receptor.
Pressão de seleção
Desafios evolutivos específicos e pressões de seleção que favorecem a sobrevivência de algumas variantes do vírus em detrimento de outras podem estar impulsionando o surgimento de variantes preocupantes. Isso ajudaria a explicar por que eles adquirem várias mutações tão rapidamente, ou por que essas variantes estão começando a surgir agora.
Uma explicação plausível para o aparecimento da variante do Reino Unido é que ela surgiu em uma única pessoa cronicamente infectada com um sistema imunológico enfraquecido que estava sendo tratada com plasma convalescente (anticorpos de um paciente recuperado). Isso teria dado uma grande vantagem a qualquer variante que pudesse resistir aos anticorpos terapêuticos. Mas continua sendo uma teoria.
Uma segunda possibilidade diz respeito ao surgimento da variante brasileira. A atual onda de infecção em Manaus é apenas o mais recente desastre da Covid-19 a atingir essa cidade. Ondas anteriores podem ter levado à infecção de 76% da população. O alto nível de imunidade resultante na população pode ter dado vantagem às mutações na proteína spike.
Embora essas variantes estejam causando preocupação, devemos permanecer confiantes de que as vacinasterão sucesso em acabar com a pandemia e permitir o retorno à normalidade. Atualmente, não há evidências de que as vacinas sejam menos eficazes contra as novas variantes. Embora seja impossível ter certeza se ou como o vírus dará mais saltos evolutivos quando confrontado com as vacinas, as modificações no imunizantes devem garantir que estejamos um passo à frente disso.
*Ed Feil é professor de evolução microbiana na Universidade de Bath, no Reino Unido.
(Texto publicado originalmente em inglês no The Conversation.)