Concebido em meio à Guerra Fria, o Tupolev Tu-144 voou antes mesmo do famoso Concorde. Mas uma carreira de mistérios, problemas operacionais e até suspeitas de espionagem levaram o modelo, apelidado de ‘Concorski’, ao esquecimento.
Tupolev Tu-144, apelidado de ‘Concordski’, com as bandeiras da Rússia e dos EUA pintadas na cauda, é exibido em aeroporto em Moscou, em 17 de março de 1996 — Foto: AP/Arquivo
No dia 31 de dezembro de 1968, em um aeroporto nos arredores de Moscou, um grupo de engenheiros soviéticos estava em êxtase: pela primeira vez, um avião de passageiros mais rápido que a velocidade do som havia saído do chão. Eles haviam largado à frente no que imaginavam ser a próxima fronteira da aviação.
Essa aeronave era o que de mais moderno havia em seu tempo. Alguns de seus feitos jamais foram superados – e, no entanto, o Tupolev Tu-144 fez pouco mais de 100 voos oficiais antes de ser aposentado, caindo no esquecimento em seguida.
Por que uma das máquinas mais pioneiras da história é tão desconhecida? E por que ela provou ser um fracasso retumbante?
A história do Tu-144 se mistura com a da Guerra Fria e envolve suspeitas de espionagem, propaganda e mistérios até hoje não esclarecidos.
“A gente pode afirmar que o Tu-144 foi usado como uma tremenda de uma ferramenta de propaganda”, define o consultor em aviação Gianfranco Beting.
Nos anos 1960, havia uma disputa entre a União Soviética e as potências ocidentais pela supremacia tecnológica. Enquanto EUA e Moscou tomavam a frente na corrida espacial em direção à conquista da Lua, engenheiros também desenvolviam aviões de passageiros maiores e mais velozes.
“Havia duas correntes de pensamento”, afirma Beting. “Uma que apontava para o incremento da velocidade, enquanto outra dizia que o futuro estava no incremento de tamanho [dos aviões].”
Os EUA tentaram, mas fracassaram em criar um avião de passageiros mais rápido que o som. Na Europa, as empresas British Aircraft Corporation e a francesa Sud Aviation uniram esforços para desenvolver o que seria o Concorde.
No bloco soviético, os engenheiros da Tupolev tomaram as rédeas do projeto – e, para a surpresa dos ocidentais, conseguiram fazer um protótipo levantar voo cerca de dois meses antes dos europeus. A semelhança motivou o apelido jocoso do modelo: ‘Concordski’.
O sucesso até hoje motiva debates sobre o possível roubo de informações do projeto do Concorde por espiões russos – algo que Beting, autor de diversos livros sobre aviação, contesta.
“Até por uma questão de guerra mesmo, de propaganda entre nações, foi muito conveniente dizer que o Tupolev 144 era uma cópia do Concorde”, ele diz.
“Mas quando a gente analisa os projetos de perto, a gente vê que não é bem assim. O 144 era mais rápido, maior, tinha uma série de soluções de engenharia muito diferentes”, explica Beting, apontando para pontos cruciais, como a posição dos motores na asa.
Tupolev Tu-144 é exibido nas cores da Aeroflot à frente de Concorde, da Air France, em museu na Alemanha — Foto: Daniel Maurer/AP/Arquivo
Em 1970, ainda em fase de testes, o Tu-144 se tornou o primeiro avião de passageiros a superar Mach 2 – ou seja, duas vezes a velocidade do som (para fins de comparação, isso seria o equivalente a quase 2.500 km/h a nível do mar). Atualmente, um avião em velocidade de cruzeiro raramente ultrapassa os 1.000 km/h.
Os avanços no projeto do Tupolev, porém, escondiam uma série de problemas que iriam se tornar fatais mais adiante.
Para Beting, as inovações de um avião supersônico estavam muito à frente das capacidades tecnológicas e industriais da União Soviética na época. A vontade política de mostrar pioneirismo fez com que o Tupolev levantasse voo com um desenho menos refinado e motores mais “beberrões” que o Concorde. Até a qualidade da borracha soviética impedia que um trem de pouso mais leve fosse instalado, por exemplo.
Para a opinião pública, a defasagem do Tupolev foi atestada com uma tragédia durante um voo de exibição em frente aos olhos do Ocidente.
Durante o Paris Air Show de 1973, no aeroporto francês de Le Bourget, Concorde e Tupolev ficaram lado a lado. Nenhum deles havia entrado em operação regular, mas a expectativa era grande no setor.
No dia 3 de junho – há exatos 50 anos -, pouco após a demonstração do Concorde, o Tupolev Tu-144 decolou, fez um rasante sobre a pista e, em seguida, entrou em uma série manobras bruscas, que fizeram a aeronave se desintegrar em pleno ar.
Vilarejo de Goussainville, na França, em meio a escombros após a queda do Tupolev Tu-144, em 1973 — Foto: Michel Lipchitz/gk/AP/Arquivo
Todos os seis ocupantes morreram, além de outras oito pessoas em solo, no vilarejo de Goussainville.
Nem as autoridades francesas, nem as soviéticas foram completamente transparentes quanto à fatalidade. Especula-se que a França tenha posicionado um caça Mirage para voar perto do Tupolev – possivelmente para coletar informações do projeto, resultando em manobras evasivas do piloto russo.
“Isso é uma questão muito difundida. O fato é que foram excedidos os limites estruturais do avião, levando à ruptura da asa. Isso está filmado, muita gente viu, muita gente testemunhou o acidente”, conta Gianfranco Beting.
Uma vez em operação, também antes do Concorde, os pontos fracos do Tu-144 ficaram claros até para as autoridades soviéticas e os operadores da aeronave.
O risco era tal que, antes de levar passageiros, o primeiro avião comercial supersônico do mundo passou anos levando somente carga e correspondência entre Moscou e a cidade de Almaty, que fica no atual Cazaquistão. A rota, inclusive, foi a única em que o modelo operou em toda a sua vida útil.
Para Beting, “o 144 foi sendo produzido e testado num ritmo alucinante em relação ao desenvolvimento tecnológico. Muita coisa ficou pelo caminho e, quando o avião ficou pronto pra voar, ele começou a mostrar uma série de problemas”.
Segundo o pesquisador, foram feitos somente 55 voos com passageiros entre 1977 e 78. Contando os voos de carga, foram 103 no total: “Um projeto completamente fracassado, sob vários aspectos”.
“Isso é uma coisa incrível”, completa. “Foram 181 horas voadas e, dentro delas, foram registradas 226 falhas – oitenta delas em voo. Isso é o que está, pelo menos, guardado nos livros. Esse número pode ser ainda maior.”
Isso é o suficiente, segundo Beting, para colocar o Tu-144 no topo da lista de aviões de passageiros mais perigosos para se voar.
O voo supersônico não era nem ao menos agradável: a fricção do ar com a fuselagem criava um barulho ensurdecedor dentro da cabine. Passageiros relataram que não era possível sequer conversar com quem estava na poltrona do lado.
Depois de outros dois acidentes com mortos, o Tu-144 jamais voltou a ser usado na aviação civil. Ele conseguiu uma sobrevida como aeronave de teste no programa espacial soviético, nos anos 80 – e, por ironia, os americanos usaram o modelo para testes para um novo avião supersônico, na década seguinte. Mais uma vez, este acabou não saindo do papel.
Enquanto o Tupolev permanecia no chão, o Concorde permaneceu em operação até 2003, antes de ser aposentado por seus altos custos operacionais. Caso sirva de consolo para os engenheiros soviéticos, porém, ele não chegou nem perto de fazer o sucesso que se esperava.
“A despeito da qualidade dos projetos”, afirma Beting, “quando esses aviões estavam sendo projetados, o preço do petróleo era um, e quando entraram em serviço, era outro”.
Com o preço do combustível nas alturas e pressões de ambientalistas por conta do ruído e do gasto energético, a operação do Concorde também ficou muito restrita. Para que desse lucro para as empresas aéreas, os supersônicos tinham passagens caríssimas, e ficaram famosos por transportar magnatas e voos regados a champanhe – principalmente entre Londres e Nova York, num trecho que durava cerca de três horas.
Hoje, com o Concorde e o Tu-144 parados em museus, fica claro que estavam certos aqueles que, lá nos anos 1960, apostaram que o futuro estava nos grandes aviões de passageiros – mesmo que eles cruzem os céus um pouco mais devagar.
Informações G1