Fraude na Amazônia: empresas usam terras públicas como se fossem particulares para vender créditos de carbono a multinacionais
Toda atividade humana depende de recursos da natureza. E aquelas que usam combustíveis fósseis ou desmatam, além de extrair, ainda devolvem para a atmosfera gases de efeito estufa (GEE) que provocam aquecimento global e eventos climáticos extremos.
É consenso entre os cientistas que o mundo precisa reduzir e eliminar as fontes que emitem esses gases, sobretudo dióxido de carbono (CO2), metano (CH4) e óxido nitroso (N2O).
Plantio de mudas para ampliar área florestal é estratégia para sequestrar carbono; regulamentação mercado de créditos de carbono no Brasil está em debate no Senado. — Foto: Jornal Nacional/ Reprodução
Para os casos em que isso não é possível agora, os créditos de carbono surgiram como uma forma de compensar as emissões de GEE: empresas ou países que conseguem deixar de despejar gases de efeito estufa na atmosfera vendem esse serviço prestado. Em geral, cada unidade de crédito de carbono é igual a uma tonelada de dióxido de carbono (CO2) ou seu equivalente em outros gases que deixou de ser emitida.
Abaixo, neste texto, você vai saber em detalhes:
Em 2022, segundo a Agência Internacional de Energia, o mundo bateu um novo recorde com a emissão de 36,8 bilhões de toneladas de gases do efeito estufa. Essa poluição acontece por meio de atividades industriais, uso de combustíveis fósseis (como gasolina e diesel), queima de carvão para geração de energia elétrica, criação de animais para pecuária, além de desmatamentos e queimadas, entre outros.
O acúmulo de gases do efeito estufa na atmosfera já levou a um aumento de 1,1ºC na temperatura média do planeta, na comparação com as temperaturas pré-industriais. Esse aquecimento vem provocando as chamadas mudanças climáticas: subida do nível do mar e aumento da frequência e intensidade de eventos extremos estão entre as consequências.
Desde 2015, dezenas de países se comprometem, por meio do Acordo de Paris, a reduzir suas emissões, a fim de evitar que a temperatura média do planeta ultrapasse, até o fim deste século, 2ºC de aquecimento na comparação com as temperaturas pré-industriais — o que agravaria ainda mais os efeitos das mudanças climáticas.
Em 2021, um estudo apontou o Brasil como o quarto maior emissor histórico (principalmente por causa do desmatamento), atrás apenas de Estados Unidos, China e Rússia.
É nesse contexto que empresas também vem publicando suas próprias metas para chegar à neutralidade de carbono ou ao chamado “carbono zero”, ou seja: zerar as emissões geradas por suas operações. O dióxido de carbono é o principal gás do efeito estufa.
No Brasil, 77% das 80 principais empresas já publicaram alguma meta de corte de emissões, segundo a consultoria McKinsey. A redução pode ser alcançada pela descarbonização das operações, por exemplo, adotando a eletrificação de alguns processos ou tecnologias menos emissoras. Essas medidas são parte da chamada transição energética.
Mas empresas de muitos setores — como aviação, mineração e transporte — ainda não conseguem optar totalmente por esse caminho e recorrem aos créditos de carbono para fazer a compensação.
O crédito de carbono funciona como um mecanismo de transferência de recursos que visa promover ações para enfrentar o aquecimento global e atingir as metas de reduções de emissões. Como já mencionado, um crédito de carbono equivale a uma tonelada de dióxido de carbono.
O valor de cada crédito depende do mercado no qual ele é negociado: regulado ou voluntário.
Em ambos os casos, os créditos, por sua vez, são gerados a partir de diferentes tipos de projetos, como de energia renovável, gestão de resíduos sólidos, reflorestamento ou de redução do desmatamento.
Os mercados de carbono estão em forte expansão. A estimativa da consultoria McKinsey é de que a demanda por créditos aumente 15 vezes até 2030, saltando de US$ 1 bilhão em 2021 para um mercado de pelo menos US$ 50 bilhões na próxima década.
No mercado voluntário, diferentes atores se relacionam:
A principal certificadora usada no mercado voluntário é a Verra, uma organização sem fins lucrativos com sede nos Estados Unidos responsável pela metodologia que calcula quantos créditos de carbono um determinado projeto pode gerar, a chamada “Verified Carbon Standard (VCS)”.
Em 2021, segundo um relatório do Banco Mundial, 62% de todos os créditos gerados no mundo eram do tipo VCS, emitidos pela Verra. Outros 9% foram emitidos pela Gold Standard, outra certificadora sem fins lucrativos, com sede na Suíça.
Ao longo dos últimos anos, os setores que mais têm gerado créditos de carbono no mercado voluntário são o de energia e o chamado AFOLU (Agricultura, Floresta e Ooutros Usos do solo).
Os projetos voltados especificamente para florestas também são conhecidos pela sigla REDD+ (Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação Florestal).
Segundo um estudo do Observatório de Bioeconomia da FGV, entre 2019 e 2021, projetos de crédito de energia aumentaram em 2,5 vezes a geração de créditos de carbono. Já os projetos de carbono florestal do tipo REDD+ quase quadruplicaram o número de créditos gerados no mesmo período.
Os projetos REDD+ são os mais comuns no Brasil, por causa das vastas áreas de florestas nativas no território ameaçadas pelo desmatamento. Em 2021, quase 75% das emissões de gases de efeito estufa do país foram relacionadas ao uso do solo: 49% provenientes do desmatamento e 25% da agropecuária.
Segundo um levantamento do escritório de advocacia Hernandez Lerner & Miranda Advocacia em Direitos Humanos, até janeiro de 2023, a maioria dos projetos localizados no Brasil e em diferentes estágios de registro na Verra eram do setor de floresta, agricultura e outros usos do solo: 87 em um total de 190 iniciativas.
Projetos de redução do desmatamento geram créditos por evitarem as emissões que seriam causadas em caso de derrubada da floresta. Quando a floresta é desmatada, o carbono armazenado nas plantas, árvores e no solo é liberado para a atmosfera. Preservada, a floresta também absorve carbono por meio do processo de fotossíntese das plantas.
No mercado voluntário, para calcular quanto carbono deixa de ser emitido e, portanto, quantos créditos são gerados, esse tipo de projeto compara dois cenários:
A diferença entre esses dois cenários é a chamada “adicionalidade do projeto”, critério crucial para que um determinado projeto possa gerar créditos de carbono. Quanto maior a adicionalidade do projeto, mais créditos ele gera.
Uma característica dos projetos de redução de desmatamento é a longa duração: eles oscilam entre 22 e 44 anos — enquanto os demais tipos são mais curtos, entre cinco e dez anos.
No caso dos projetos em Portel, por exemplo, as iniciativas propõem gerar créditos ao longo de 30 até 41 anos, nos períodos de 2009 a 2048, 2016 a 2045, 2018 a 2048 e 2019 a 2058.
Essa longevidade impõe vários riscos de incertezas futuras, segundo o escritório Hernandez Lerner & Miranda Advocacia em Direitos Humanos, como “mudanças no cenário político, flutuações de mercado e situações que podem colocar em questão a implementação e sucesso do projeto, como por exemplo desmatamento, queimadas ou eventos extremos e imprevisíveis”.
Esses riscos impõe a necessidade de monitoramento e verificação constantes, o que pode incidir nos custos do projeto.
A lógica por trás de projetos do tipo REDD+ é oferecer uma alternativa econômica para que as florestas ao redor do mundo valham mais preservadas do que derrubadas ou degradadas por atividades como extração de madeira, agricultura e pecuária.
No esforço global contra a crise climática, a vantagem da conservação florestal é dupla: florestas em pé não só deixam de ser emissoras dos gases do efeito estufa, como são sequestradoras do gás carbônico já emitido (as plantas absorvem gás carbônico no processo de fotossíntese e liberação gás oxigênio).
Isso sem nem entrar no fato de que as florestas ao redor do mundo são a casa de dezenas de povos, além de milhares de espécies de plantas, animais e fungos, trazem inúmeros benefícios (da manutenção da biodiversidade e do regime de chuvas à promoção da qualidade do ar), além de possuírem valores culturais, sociais e espirituais que são intangíveis e imensuráveis.
No mercado regulado e no âmbito do programa específico da ONU para REDD+, iniciativas do tipo precisam cumprir uma série de obrigações não apenas ambientais, mas também sociais, como garantir que as comunidades locais sejam consultadas e participem dos projetos.
Também precisam respeitar os direitos e os conhecimentos de comunidades tradicionais, como povos indígenas. Além de terem mecanismos claros de governança e de repartição dos benefícios dos projetos com os moradores locais.
No mercado voluntário, a consulta às comunidades tradicionais também é necessária em países como o Brasil, que é signatário da Convenção Nº 169 da Organização Internacional do Trabalho.
Muitos projetos também procuram programas de registro adicionais para atestar que geram outros benefícios sociais e ambientais para além da redução de emissões, é o caso do programa CCBS, que emite créditos de carbono para projetos que incluem, entre outros, conservação da biodiversidade e desenvolvimento comunitário. O CCBS também exige a participação e o benefício das comunidades locais.
Proteção dos direitos dos povos e comunidades tradicionais
No Brasil, o Ministério Público Federal, em conjunto com o Ministério Público do Estado do Pará, publicou, em julho, uma nota técnica com orientações para a proteção dos direitos dos povos e comunidades tradicionais no mercado de carbono. Os órgãos recomendam que:
Recentemente, vários estudos científicos e investigações jornalísticas vem apontando falhas em projetos de crédito de carbono de redução do desmatamento negociados no mercado voluntário.
Uma investigação do jornal britânico “The Guardian”, em parceria com a revista alemã “Die Zeit”, a organização SourceMaterial e baseada em três estudos científicos, concluiu que 94% dos créditos comercializados por projetos ativos e registrados pela Verra não representaram reduções reais de emissões de gases do efeito estufa.
O principal problema encontrado pela investigação é a distorção do chamado cenário linha base. Os projetos analisados estariam superestimando esse cenário para aumentar a adicionalidade de seus projetos e, assim, gerar mais créditos. A Verra defendeu sua metodologia e refutou a abordagem usada pelos estudos.
Em julho, pesquisadores do Instituto Federal de Tecnologia de Zurique, na Suíça, revisaram estudos empíricos que abarcam mais de 2 mil projetos de créditos de carbono de vários setores no mercado voluntário e concluíram que apenas 12% do volume total de créditos gerados representou reduções reais de emissões.
Para se ter uma noção de grandeza: essa lacuna entre o quanto os projetos dizem evitar de emissões e as emissões realmente reduzidas por eles corresponde a quase o dobro do emitido anualmente pela Alemanha. No caso dos projetos do tipo REDD+, apenas 25% dos créditos gerados corresponderam a emissões realmente evitadas.
“O nosso estudo dá mais apoio ao encontrado pelo Guardian no sentido de que existem sérias questões sobre a verdadeira adicionalidade desses projetos voluntários de carbono florestal”, disse ao g1 o professor da Universidade de Cambridge Andreas Kontoleon, co-autor do estudo e de uma das pesquisas que embasou a reportagem do jornal britânico.
Para Kontoleon, nem todos os projetos do setor de floresta são problemáticos e as novas pesquisas devem ajudar a compreender o que torna uma iniciativa bem-sucedida.
“Como economista, eu não sou ideologicamente contra a esse tipo de projeto de compensação [de emissões]. Pelo contrário, eu sou a favor de soluções de mercado para combater as mudanças climáticas. Nós só precisamos descobrir quais que estão funcionando e ficar com essas”, afirmou ele.
Além da dúvida sobre o verdadeiro impacto dessas iniciativas na redução de emissões, muitos projetos vêm sendo denunciados por ameaças a povos indígenas e comunidades locais.
Várias reportagens no Brasil e no mundo trouxeram à tona denúncias de assédio e coação contra essas comunidades, falta de transparência nas negociações, acirramento de conflitos fundiários, ameaças aos modos de vida tradicional e de expulsão.
Para Juliana Miranda, do escritório de advocacia Hernandez Lerner & Miranda Advocacia em Direitos Humanos que analisou o cenário do mercado voluntário, é importante não generalizar. Ela lembra que, como em qualquer mercado, há bons atores e maus atores também no mercado de crédito de carbono.
Em setembro, foi apresentada a versão mais recente de um projeto de lei que pretende regulamentar o mercado de crédito de carbono no Brasil, criando o Sistema Brasileiro de Comércio de Emissões de Gases de Efeito Estufa (SBCE).
Senado retoma discussão do projeto que regulamenta mercado de créditos de carbono no Brasil
Pela proposta, em análise pelo Senado e construído em conjunto com o Executivo, projetos no mercado voluntário terão que ter metodologias credenciadas pelo órgão gestor do SBCE, além de serem mensurados e verificados por uma entidade independente.
O texto também tem um capítulo específico para tratar do mercado de carbono voluntário em áreas de comunidades tradicionais — caso dos projetos em Portel — e prevê a obrigatoriedade do consentimento das comunidades “resultante de consulta livre, prévia e informada”, além de “definição de regra para a repartição justa e equitativa” e gestão participativa dos eventuais ganhos da comercialização dos créditos.
A autora do substitutivo mais recente é a senadora Leila Barros (PDT-DF), relatora do projeto de lei nº 412, de 2022. O texto está sob análise da Comissão de Meio Ambiente do Senado. No último dia 27, a votação do texto na comissão foi adiada.
(Abaixo, veja reportagem do Globo Rural sobre o mercado de carbono)
Informações G1