Foto: Divulgação/ Copacabana Filmes
Getúlio Vargas (1882-1954) tem uma das biografias mais cercadas de polêmica entre os personagens da História do Brasil. O político ambicioso que deixa o Rio Grande do Sul pela primeira vez aos 41 anos, em maio de 1923, determinado a se tornar presidente da República, o 14º chefe do Executivo Federal do Brasil — o gaúcho de São Borja, sudoeste do estado, voltou à Presidência uma segunda vez —, reúne em torno de si lendas que se foram desvanecendo na bruma corrosiva dos anos, mas que retornam com vigor a toda prova quando confrontadas com a condição do regime democrático do país no início deste século 21. “Getúlio”, cinebiografia das menos ideologicamente comprometidas sobre o líder de um Brasil que de quando em quando renasce das cinzas do autoritarismo, da opressão do fascismo, do populismo, do ordinário manejo das massas — se é que chegou a ser outra coisa algum dia —, tem um compromisso com a boa reportagem. O tom destacadamente jornalístico adotado pelo diretor João Jardim, documentarista experimentado, dono de narrativas em que a técnica escorreita alia-se a dramas apresentados com muita sutileza, é por certo um ativo poderoso num enredo que poderia descambar para a hagiografia mais constrangedoramente abominável.
É bom que fique claro desde logo que “Getúlio” não é exatamente uma biografia: é um recorte dos dezenove últimos dias da vida do presidente, em seu segundo mandato — este conquistado à custa de votos, ou seja, Vargas continuava perigosamente popular mesmo depois de investir contra a democracia em duas ocasiões — e sobre grande parte das pessoas e dos lugares que integram a história dentro da História. O roteiro de George Moura e Teresa Frota explora a imagem marcante de Vargas perseguido, encastelado no Palácio do Catete, sede do governo e residência oficial do chefe do Executivo, entabulando soluções cada vez mais improváveis para a crise em que fora lançado em 5 de agosto de 1954, infortúnio que desde sempre puxava para a solução definitiva, irremediável e pusilânime que acabou por tomar. Esse conveniente lugar-comum presta-se à introdução sintética em que Jardim deslinda num flashback que se estende pelos cem minutos de projeção a escalada inicial do déspota, com a Revolução de 1930, responsável por depor Washington Luís (1869-1957), em 24 de outubro daquele ano, e vedou a Júlio Prestes (1882-1946) sentar-se à cadeira mais importante da República Velha. A trajetória de homem público do Pai dos Pobres talvez tenha sido das mais fiéis ao espírito de um país que tentava se constituir nação, mas esbarrava num obstáculo tão rasteiro quanto perigoso: o fisiologismo. Depois de alijado do poder, sucedido pela junta provisória encabeçada pelo cearense José Linhares (1886-1957), Vargas conseguiu apoio para candidatar-se a senador por seu estado natal, mero passatempo até voltar ao Catete, em 31 de janeiro de 1951. Tudo como sempre em seu quartel.
A derrocada de Vargas, o tiro no pé, com a licença do trocadilho, de tão esdrúxulo só pode mesmo ter passado muito longe de seu apetite por influência e mando, ainda que em seus delírios mais patológicos. Essa trama perniciosa teria o condão de findar de imediato a jornada assimétrica do caudilho, num regresso triunfal pelas urnas, mas um ditador empedernido apenas tira férias periódicas de sua natureza de tirano, como bem afirmou a seu respeito o deputado Afonso Arinos de Melo Franco Sobrinho (1905-1990) numa esgrima intelectual extratribuna com o colega Gustavo Capanema (1900-1985), ex-ministro da Educação de Vargas entre 1934 e 1945, até hoje o mais longevo no posto. Ainda que muito lacônica, as participações de Daniel Dantas e Cláudio Tovar conferem uma noção da unidade entre os atores. Nesse departamento, Tony Ramos deixa a desejar com um personagem que mistura sotaques sem a menor cerimônia e nunca alcança em plenitude os tons mais graves da agonia de Vargas; Drica Moraes, por seu turno, ilumina a tela com uma performance ora cortante, ora suave, evidenciando a devoção e a obediência cega de Alzira (1914-1992) ao pai, em cujo governo atuou como chefe do Gabinete Civil em caráter oficial, mas foi muito além disso, guiando o presidente em muitas de suas decisões. Revezando-se no papel de primeira-dama do estado do Rio de Janeiro, governado por Ernâni do Amaral Peixoto (1904-1989) sob a ascendência de Getúlio, a terceira dos cinco filhos de Vargas e dona Darcy foi das mais combativas na empreitada de instigar Gê, como o chamava na intimidade, a não apear da Presidência, malgrado o cerco não desse sinais de que afrouxaria.
O fatídico episódio da rua Tonelero, hoje um mar soturno de castanheiras cuja ramagem se alastra sem controle, é circunstanciado de forma didática, mas nada tediosa. A participação de Vargas no atentado ao jornalista Carlos Lacerda (1914-1977), futuro deputado federal pela União Democrática Nacional, a UDN, e governador da Guanabara, era, como se disse, tão absurda que só poderia mesmo ter sido resultado da azáfama liberticida de seus sequazes. O udenista sobreviveu, mas Rubens Vaz (1922-1954), o major da Aeronáutica de 32 anos que escoltava Lacerda, foi morto, o que desencadeou a crise, que por conseguinte levou ao desfecho infeliz de Getúlio. O inquérito da polícia concluiu que o mandante do homicídio fora Gregório Fortunato (1900-1962), o Anjo Negro de Vargas — sob a orientação, segundo ele, de Benjamin (1897-1973), o Bejo, irmão de Vargas — e o executor, Alcino João do Nascimento (1922-2014), matador de aluguel. Bejo Vargas e todos os outros peixes grandes mencionados por Fortunato foram absolvidos. O ex-chefe da guarda do presidente foi condenado a 25 anos de reclusão. Dez anos depois, em 31 de março de 1964, o Brasil mergulhava na balbúrdia institucional adiada por uma década com a ditadura militar que se sobreporia pelos 21 anos seguintes.
Filme: Getúlio
Direção: João Jardim
Ano: 2014
Gêneros: Drama/Biografia
Nota: 9/10
Informações Revista Bula