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Foto: Divulgação

Ao longo de mais de um século, o cinema se tornou, sem margem para maiores questionamentos, a arte mais glamourosa da natureza humana. Filmes, a despeito de sua natureza já um tanto sofisticada, foram adquirindo uma aura de sublimidade, primando cada vez mais pela beleza, pelo requinte estético, pela harmonia da forma, sem prescindir, claro, da evolução de seus recursos. O cinema é também é o conjunto das manifestações artísticas que mais dependem da tecnologia. Aborde-se o assunto que se queira, filmes são dependentes de muita inteligência artificial, muitos computadores, muita afinação técnica, a fim de que o resultado do empenho de uma equipe com dimensões de verdadeira falange agrade o público, e, de preferência, igualmente a crítica. A competição quanto a um lugarzinho um pouco mais ensolarado entre diretores e atores de diferentes estúdios já daria um filme daqueles – tanto daria como deu. Excelentes profissionais estão sempre se digladiando à procura do tão ansiado reconhecimento que, como tudo na vida, não é para todos. Nunca há Oscar que chegue para todas as produções que o merecem, e isso também acaba virando matéria para muito bafafá. Restam filmes que continuarão soberbos, essenciais na formação da humanidade, a despeito de não contarem com seu homenzinho dourado. A história do escritor agraciado não com um Oscar, mas com um Nobel, o que não é nada ruim, malgrado desdenhe do prêmio — e da própria origem —, é o mote do argentino-espanhol “O Cidadão Ilustre” (2016), dirigido a quatro mãos por Gastón Duprat e Mariano Cohn. Representante do melhor da inventividade e do talento asiáticos, o sul-coreano “A Sun” (2019), de Chung Mong-hong, traz no enredo a saga de uma família em pedaços, devido à inconsequência do filho caçula. É justamente por “A Sun” que começamos a nossa lista, que dispõe de outros cinco títulos, além de “O Cidadão Ilustre”, todos na Netflix, do mais novo para o mais antigo, a fim de deixar a sua vida facinha, facinha. Eles não levaram o prêmio máximo da indústria cinematográfica de Hollywood, mas, se serve de consolo, são hors-concours aqui na Bula. E você, também acha?

Imagens: Divulgação / Reprodução Netflix

A Sun (2019), Chung Mong-hong

“A Sun” começa de maneira brusca e, assim, o espectador já fica esperto quanto ao que pode esperar do drama taiwanês do diretor Chung Mong-hong. Mas que ninguém se desestimule: o enredo é todo permeado por respiros cômicos — e eles são mesmo necessários. A pobreza, ainda que num país rico, é implacável, e ai daquele que pense que pode subverter o estabelecido. Contudo, seria tolo afirmar que o risco social é o responsável por fomentar a criminalidade; o fato é que a alma de todo homem tem sua face sombria — e cada um deve mantê-la sob controle. E controle — e, por extensão, autocontrole —, é uma ideia cara aos orientais. Um pai de família honrado não se prestaria a aturar os deslizes de caráter por parte de um filho, muito menos seus delitos. Ao tomar conhecimento da prisão de A-Ho, A-Wen exige que o caçula seja sentenciado com uma pena dura, o que revolta sua mulher, Qin, mãe do rapaz. A partir daí, o que se segue é a total desintegração do que até tão pouco tempo era um lar (e uma família). Ainda que haja uma ou outra tentativa pontual de contornar a questão, o casal, juntamente com o filho mais velho, pressentem que nada vai voltar ao ponto anterior à ruptura. A vergonha que todos sentem pelo destino de A-Ho, tornado ainda mais significativo numa sociedade que valoriza sobremaneira a austeridade da conduta social, o constrangimento, o remorso, tudo converge para que não consigam se encontrar outra vez. O sol pode ser o que há de mais justo no mundo, mas só pode iluminar e emprestar seu calor a ambientes que se abram para ele. Do contrário, fica eternamente preso em meio à nuvem de ignomínia e pequenez que flutua sobre a natureza do homem desde sempre.

Ya no Estoy Aquí (2019), Fernando Frías de la Parra

Ulises não é nenhum personagem de Homero, nem faz parte de “Odisseia” alguma, mas bem que poderia. O protagonista de “Ya no Estoy Aquí” tem sua jornada própria, uma trajetória em busca de autoconhecimento e descobrimento do mundo, honra, afirmação. O garoto de 17 anos, como qualquer um em Monterrey, nordeste do México, gosta de roupas largas, cabelo extravagante, penduricalhos, estética que, sob uma análise ligeira, remeteria aos rappers nova-iorquinos. No caso de Ulises, o moleque é um digno representante da cultura regional, hispânico-latina, mais precisamente. Ele sonha em se tornar um expoente da Kolombia, um subtipo da cúmbia, ritmo surgido no país sul-americano, com algumas variações de tempo. Ulises também, como um adolescente comum, anda em companhia dos amigos, e aí é que está o problema. Numa dessas, conhece criminosos de verdade, se mete em confusão com eles e sua única saída é imigrar, no bagageiro de uma van, para os Estados Unidos. Lá, se vira como pode, dançando no metrô a fim de defender um trocado e dorme de favor na água-furtada da garota sino-americana, também uma intrusa no mundinho abafado da América, interessada nele, mas não correspondida, porque Ulises não fala inglês, e tampouco a moça entende espanhol. O filme de Fernando Frías de la Parra é um portento de beleza, de originalidade, com seus planos ora disparados, ora lentos, quase se arrastando, tudo friamente pensado, enquadramentos quase sempre muito abertos, a fim de conferir à cena a sensação de distância, de exclusão. O resultado de tamanho esmero é um genuíno tratado antropológico sobre a juventude em países periféricos da América Latina, sobre a resistência cultural nesses rincões perdidos, mediante a ótica do oprimido, sem jamais se permitir concessões ao vitimismo. Ulises é digno até a raiz do cabelo descolorido, mesmo quando reconhece a derrota e se submete. Um herói, portanto.

O Autor (2017), Manuel Martín Cuenca

O que seria da natureza humana sem o sonho? É o devaneio, a capacidade de imaginar outras possibilidades o que faz o homem persistir na luta pela sobrevivência, prosperar, evoluir. Álvaro é um sonhador, mais até: Álvaro é um obstinado. Iria às últimas consequências quanto a se tornar um escritor de renome, de prestígio, não os caça-níqueis que Amanda, sua mulher, gosta de ler. Justamente Amanda é quem dá o impulso que faltava para que o protagonista de “O Autor” se dedique exclusivamente à sua promissora carreira literária: Álvaro flagra a mulher com outro e decide que é hora de mudar tudo em sua vida. Larga o emprego, determinado a viver da pena, mas nem bem começou a ser artista e já lhe falta inspiração, até que lhe ocorre a genial ideia de provocar conflitos em quem os cerca, a fim de observar suas reações e, enfim, escrever. O que ele não imaginava, limitado também como indivíduo, é que ele passaria como a principal vítima de suas armações.

Rastros de um Sequestro (2017), Jang Hang-jun

O suspense do diretor Jang Hang-jun vem confirmar a trajetória ascendente do cinema sul-coreano. A narrativa do ótimo “Rastros de um Sequestro” gira em torno de Jin-Seok, que acaba de se mudar com a família para uma casa nova. Certa noite, o rapaz presencia o sequestro do irmão mais velho, Yoo-seok, que volta 19 dias depois, sem se lembrar de nada. A reação de Yoo-seok poderia ser entendida como natural frente a tamanho choque, mas Jin-Seok começa a estranhar o comportamento dele e o fato do irmão sempre sair a altas horas. Convencido de que a pessoa que passou a conviver com a família não é Yoo-seok, o protagonista decide investigar o caso por conta própria.

O Cidadão Ilustre (2016), Gastón Duprat e Mariano Cohn

Em “O Mundo como Vontade e Representação”, publicado em 1818, o filósofo polonês Arthur Schopenhauer (1788-1860), defendia a ideia da vida sob a forma de uma vontade de vida, isto é, a vida seria uma mera prospecção do homem acerca de seus desejos mais obscuros. O homem não sabe querer, pois ao querer já espalha destruição por todo lado, e, portanto, há que se negar toda vontade, mesmo (ou em especial) as que, aparentemente, possam induzir a supostas boas intenções. Depois de um discurso o seu tanto ácido na cerimônia da entrega do Prêmio Nobel de Literatura, com o qual é agraciado, Daniel Mantovani, um bem-sucedido escritor que saíra de Salas, na Argentina, onde nascera e vivera até os 20 anos e fora viver em Barcelona, na Espanha, começa a sentir os efeitos autodestrutivos de sua sinceridade indomável. Os compromissos mais importantes são cancelados, sobra um ou outro simpósio ou palestra menos insignificante, e uma série de homenagens que o prefeito de Salas, justamente de Salas, houve por bem lhe dedicar. Daniel não está à beira da falência ou passando algum apuro de dinheiro, não se trata disso: o que o move é um misto de vaidade — porque, como ele mesmo reconhece, um escritor é feito de pena, papel e vaidade —; orgulho por, depois de haver desdenhado do Nobel, sua cidadezinha ter se lembrado dele; e, quem sabe, alguma condescendência. Por mais que tenha vivido os últimos 40 anos dizendo a si mesmo que seu passado o incomodava, de maneira consciente ou não embarca para a Argentina, sequioso por reencontrar esse passado. E o passado de fato permanece lá, mas diferente, como ele próprio. Como se Salas tivesse dedicado quatro décadas a fim de arquitetar uma vingança contra o filho ilustre, mas soberbo, uma sucessão de eventos começa a se abater sobre Daniel, primeiro apenas vexatórios. O constrangimento logo cede lugar a situações que exigem dele posições mais duras, como artista e como indivíduo. O escritor é impingido a tomar parte em diversas polêmicas, ainda que involuntariamente em algumas circunstâncias, e sua permanência na cidade natal se torna insustentável. O sermão (mais um) com que ataca as “autoridades” salenses, inclusive um autoproclamado artista plástico, presidente de uma associação de classe, que manipula o resultado de um certame de pintura que recusara seu quadro a fim de ser um dos vencedores, é, já faltando pouco mais de vinte minutos para o encerramento, o ápice do enredo. Sua forma de compreender a política, a arte, a cultura — palavra que lhe provoca asco —, são lições de vida para qualquer um, a despeito da época em que se esteja, num roteiro que não demanda nem o mínimo retoque. No surpreendente final, a pergunta que resta nas cabeças e nas bocas é: que diabos ele foi fazer lá? Mas a conclusão é óbvia e vem de imediato. Valeu a pena.

A Livraria (2017), Isabel Coixet

Tentativas de mudar o estabelecido são sempre difíceis, quando não resultam infrutíferas, especialmente em se sendo mulher, de meia-idade e num lugar que não é o seu. Em plenos anos 1950, uma livreira chega a uma cidadezinha no litoral da Inglaterra disposta a deitar raízes e seguir com seu negócio. Para tanto, terá de se investir de uma boa camada de destemor, a fim de vencer o conservadorismo dos novos vizinhos, o que a fará se valer das mesmas armas que seus adversários.

A Voz do Silêncio (2016), Naoko Yamada

Contra um mundo que só fala veneno, a surdez. “A Voz do Silêncio”, de Naoko Yamada, ao abordar temas sensíveis como assédio moral entre crianças e adolescentes, deficiência física, autoaceitação, acerto de contas com a vida, presta um grande serviço ao público, não prescindindo de observar o requinte estético e a força da mensagem. Shōko Nishimiya, a protagonista, é uma garota surda. Shōko nunca tivera problemas quanto a sua condição, mas ao ser transferida para uma nova escola, acaba sendo hostilizada pelos colegas, liderados por Shouya Ishida, o valentão do pedaço. Shouya é acusado e a direção o expulsa. Passa a ser visto como um pária, os amigos se afastam e ele não sente mais vontade de planejar algum futuro, nem mesmo de continuar a viver. Planeja seu suicídio por anos, meticulosamente, ao ponto de conseguir juntar o dinheiro gasto pela mãe com o reparo dos aparelhos auditivos da ex-colega, que ele quebra numa de suas investidas contra a garota. Debruça-se junto ao parapeito de uma ponte e sobe para o lançamento, mas no instante derradeiro fica a par de que Shōko vai ser sua colega outra vez e, vislumbrando a oportunidade de se redimir, desiste, dando início a uma nova — e benfazeja —etapa em sua história. “A Voz do Silêncio” se trata justamente disso: a metáfora da existência como uma interminável chance de se recolher os cacos da dignidade e se recompor. O emprego da paleta de cores pendendo para tons pastéis e a preferência por planos mais abertos colaboram quanto a tornar o ambiente mais oxigenado e suscetível à conversão do antagonista, sem que haja mais vácuos. Nem silêncios.

Informações Revista Bula

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