Não há ninguém no mundo que nunca tenha pensado haver nascido no tempo errado, no lugar menos propício, sob condições injustamente adversas e das pessoas mais inadequadas. Esses pensamentos torturam a alma e o corpo de muita gente às vezes por tempo demais — até por uma vida inteira — e não existe tanto assim a ser feito: se o indivíduo não resolve pegar o bicho feio chamado destino pelos chifres, arrastá-lo até pastagens seguras e domá-lo de uma vez por todas podem transcorrer anos, quiçá décadas, para que se tenha alguma ilusão quanto a se vencer a mais cruenta das guerras. Enquanto não se chega a esse termo, alguma coisa parece restar sempre por ser concluída, feito o alvorecer num dia sem sol, como se a noite não tivesse mais fim, prolongada pelo canto mavioso e sinistro dos pássaros madrugadores. Há quem resolva o enigma, há quem se feche para a vida e morra para tudo o mais que levanta e derruba o mundo, mas também existem os que passam por cima de uma tristeza impendente e renovam suas forças com a ajuda de um mecanismo admiravelmente imperfeito.
Um casal nada comum dá a “De Férias da Família” (2022) a profundidade que poucas comédias ditas banais, os tais besteiróis, alcançam. O diretor John Hamburg resolve abordar desilusões, sonhos frustrados, sonhos por deixar o limbo e emergir à superfície do real e, claro, o amor, onipresente nas relações humanas mais vigorosas e transformadoras, valendo-se de um núcleo familiar nada óbvio, e também por isso memorável, capaz de despertar a simpatia de públicos heterogêneos. Grande parte do mérito do filme de Hamburg se deve ao desempenho particularmente dedicado do protagonista. Kevin Hart é o homem certo para o papel certo e faz de Sonny Fisher um personagem memorável, guardadas as devidas proporções. “De Férias da Família” é uma produção assumidamente modesta, e é essa mesma a sua força. O diretor encaminha seu roteiro de modo a dar oportunidade a que todo o elenco, composto maciçamente de negros e latinos, tenha sua vez, o que imprime ainda mais fluidez aos enxutos 104 minutos. Tempo que não sobra nem falta para se contar uma boa história.
Sonny é pai, mas não chefe de família, posto que cabe a Maya, a arquiteta bem-sucedida interpretada por Regina Hall — e nunca houve nenhum problema entre eles por essa razão. O abismo que os separa, deslindado com cautela por Hamburg, diz respeito a uma certa resistência do personagem central em amadurecer. Dono de um carisma magnético, Hart consegue fazer vir à tona alguns aspectos estimulantes em Sonny. Ao passo que assume a nobilíssima função de educar e assistir aos filhos, Dashiell e Ava, de Che Tafari e Amentii Sledge, ele também mete os pés pelas mãos ao querer se mostrar sempre solícito aos amigos, em especial Huck Dembo, que conhece desde tenra idade. Prestes a completar 44 anos, o tipo um tanto marginal vivido por Mark Wahlberg faz questão de contar com a presença do companheiro de toda a vida. Sonny continua a querer-lhe bem, mas os rumos que cada um escolheu tomar faz com que o protagonista verbalize com todos os esses e erres que não tem mais energia — e nem vontade — de despender uma noite de bebedeira (e outras farras) acompanhado de gente recém-saída da adolescência. Uma boa reviravolta na trama acaba garantindo que compareça à pândega e reviva tempos que se supunha mortos, como os que registra a abertura do longa, quinze anos atrás no deserto de Utah, oeste dos Estados Unidos.
Hamburg entulha o filme de uma pletora de subtramas, todas anticlimáticas em maior ou menor proporção e bastante duras de engolir. À participação de Luis Gerardo Méndez como Armando, espécie de guru do capitalismo que se aproxima de Maya e desperta a fúria ciumenta de Sonny, juntam-se as figuras de Thelma, personificada por Ilia Isorelys Paulino, e Stan, de Jimmy O. Yang, em extremos opostos, mas que vibram no mesmo diapasão: poluir o enredo de passagens escatológicas, sempre dispensáveis. Nesse particular, a atuação de Méndez ganha destaque graças a nuanças menos chapadas de seu personagem, um ricaço mulherengo e solitário.
Esse pecado de “De Férias da Família” — sempre pelo excesso, nunca pela falta — é até capaz de se constituir um capital do trabalho de Hamburg, responsável por outros filmes de escopo semelhante, qual seja, fazer com que a plateia simplesmente esqueça da vida. E nada como, de quando em quando, imaginar que todos os problemas da nossa patética existência se resolvem com um besteirol tolinho, como numa das finadas matinês de antanho.
Filme: De Férias da Família
Direção: John Hamburg
Ano: 2022
Gêneros: Comédia
Nota: 8/10
Informações Revista Bula